domingo, 31 de janeiro de 2010

Introdução


Começo dizendo que esta é uma história simples, mas real, e que descreve, talvez, uma de minhas maiores aventuras.
O meu Caminho de Santiago de Compostela.
Uma viagem que teve um destino definido, mas que me levou profundamente a uma outra viagem para dentro de mim mesmo, numa vivência singular de autoconhecimento.
Com o título: “Buscando Estrelas”, montei pedacinho por pedacinho esse diário escrito ao fim de cada etapa diária. Dentro de meu saco de dormir, e com uma lanterninha acesa presa à cabeça para não acordar meus companheiros de albergue, ou durante as pausas necessárias para um descanso merecido, ou mesmo em qualquer lugar onde pude rabiscar algo que queria eternizar de alguma forma.
Aqui, há um pouco do que se registrou em minha memória enquanto caminhava, e incluo também algumas imagens capturadas pelas lentes de minha máquina fotográfica digital, para que vejam um pouco do que meus olhos se deliciaram em ver.
Fui aprendendo muito a cada dia como todo peregrino, e gostaria de concluir essa introdução com um resumo das principais lições que se fixaram em minha mente e que, sem nenhuma pretensão exagerada, deveria ser considerado seriamente por qualquer leitor que se entusiasme, e um dia resolva buscar Santiago de Compostela.
Ao final, chamei essa lista de “10 Mandamentos do Peregrino”. Embora não acrescentem grandes novidades ao imenso banco de informações disponíveis sobre o Caminho, são ensinamentos realmente comprovados por mim mesmo, às vezes de forma dolorida, e em outras vezes de forma até divertida.

São estes os meus dez mandamentos:

1. Cada um faz o seu próprio Caminho!
Alguns fazem o Caminho de modo solitário, sem qualquer coisa que lembre a civilização. Dormem em albergues rústicos e sem nenhuma infraestrutura, quem sabe na busca de um isolamento que os levem a um maior aprofundamento em si mesmos.
Outros fazem em grupo, com carros de apoio, dormindo em hostais (pequenos e confortáveis hotéis), com telefones celulares, e conectados à internet.
Mas enfim, todos são peregrinos, e ao final acabam encontrando o que procuram, de um jeito ou de outro.
Por isso, não julgar é o primeiro mandamento.

2. Estude antes e detalhadamente cada etapa do percurso
Há tantos modos de saber para onde devemos ir a cada etapa, e é algo inaceitável iniciá-la a cada dia sem uma prévia e rápida avaliação. Onde será a próxima parada? Quais os pontos a serem vistos com mais atenção? Há fontes de água potável? Há lugares onde se pode comer? Os trechos são urbanos ou rurais? Há muitas subidas?

3. As Fontes são valiosas. Beba muita água e encha sempre o cantil
Com sede, não se aproveita a caminhada. Água é vida!

4. Cuide muito bem dos seus pés!
Seus pés serão fundamentais para o sucesso da empreitada, e por esse motivo, deverão ser tratados como jóias durante todo o tempo. Vi muita gente boa e forte desistindo por causa deles.

5. Em certos momentos, nada tem mais valor que uma seta amarela!
O Caminho é todo sinalizado com placas e setas amarelas. Às vezes, chegar ou não chegar depende exclusivamente da atenção do peregrino em encontrá-las indicando a direção certa.

6. Caso tenha dúvida em manter algo na mochila, tire-o imediatamente.
Por mínimo que seja, andar com qualquer peso acima do estritamente necessário é pura ignorância. A mochila é a parte móvel da casa do peregrino ao longo do Caminho, e vai às suas costas fazendo valer a força da gravidade. Por isso, quanto mais leve, melhor o aproveitamento de tudo o que se vive, e de tudo o que se vê.
A grande lição desse mandamento e que poderia ser aprendida por todos é: Precisamos de muito menos do que temos para viver!

7. Depois da Chuva vem o Sol. Depois do Sol vem a Chuva
Olhar a previsão do tempo à noite e pela manhã não é ruim. Mas é algo que tenta nos fazer acreditar sermos capazes de influenciar o que está totalmente fora de nosso controle: a natureza.
Por isso, o peregrino deve ter uma boa proteção (capa, agasalho, luvas, etc.), mas mais que isso, ele deve seguir em frente, pois um sol brilhante e maravilhoso o espera atrás de cada nuvem escura e passageira. É tudo uma questão de tempo e perseverança.

8. Mesmo que tenha memória fotográfica, fotografe!
Tem gente que diz: Minhas câmeras são os meus olhos, e meus álbuns são minhas lembranças.
Definitivamente, não concordo com isso. Não importa se a câmera é digital ou descartável. Fotos de uma aventura tão grandiosa como essa são registros que fazem parte da contrapartida do peregrino para com os seus entes queridos, muitas vezes impossibilitados de se empreender num desafio dessa dimensão. Mas que torcem pelo seu êxito, e merecem o prêmio de poder escutar as estórias engraçadas da viagem, vendo lindas fotografias, e com uma taça de um bom vinho nas mãos. Assim, também se sentem um pouco peregrinos.

9. Respeite os sinais que seu corpo dá!
Alguns se cuidam até demais, e outros são preguiçosos. Mas, alguns teimam em ultrapassar seus próprios limites. Esse mandamento é destinado a esses últimos, que se empolgam e acabam sendo obrigados a desistir antes do final, unicamente por não captar um sinal do corpo para um descanso necessário, ou mesmo para um ritmo mais lento e mais adequado.

10. Conheça sempre muitos peregrinos!
O grande ganho social da caminhada é conhecer pessoas de todas as partes do mundo, entrar em contato com todo o conhecimento e toda a sabedoria que elas trazem. Mesmo uma opção de caminho solitário não deve prescindir dessa experiência maravilhosa e que tanto nos pode ensinar.

Além desses aprendizados, vale ao peregrino saber um pouco sobre algumas coisas e objetos, que deverão estar na mochila. E por exclusão, os que não deverão estar.
Alguns são básicos e imprescindíveis. Outros são pelo menos muito úteis, e certamente serão usados durante o percurso. São eles:
1. Cremes hidratantes e pomadas para mãos e pés
2. Tornozeleira
3. Toalhas absorventes e/ou fraldas de pano
4. Lanterna de cabeça
5. Estojo (pequeno) de primeiros socorros (o conteúdo depende de cada um)
6. Três calças (daquelas próprias para Caminhada, que podem se transformar em bermudas), três camisetas. Três cuecas (ou calcinhas para as mulheres), três pares de meias grossas apropriadas para caminhadas, e dois pares de meias de tecido mais fino (use sempre a grossa sobre a fina), um par de botas (serão companheiras até se acabarem pelo uso), um par de tênis (ou papete), e uma jaqueta.
7. Se estiver frio, use muita proteção para mãos, cabeça, pés, enfim, tudo que ficar exposto.
8. Uma tesoura pequena, Band-aid (lá eles têm um tipo especial chamado COMPEED que protege as bolhas de forma inacreditável). Embora tenha comprado, não precisei, mas fui exceção.
9. Protetor solar para pele e labial
10. Capa de chuva, (calça e blusa) e uma só para a mochila.
11. Sacos plásticos
12. Pochete e um indispensável saco hermético para aquilo que realmente não pode molhar (documentos, etc.).
13. Celular. Sim! Isso mesmo, quem tiver condições deve levar um. Em algumas circunstâncias pode ajudar, e muito. (Muitos irão me criticar, mas quando isso acontecer, por favor, leiam o primeiro mandamento, logo acima).
14. Relógio
15. O cajado será um grande companheiro, mas encontre o seu durante a jornada.

Vale mencionar que algumas cantigas me fizeram companhia em vários momentos. Cantei muito quando estava sozinho, e mesmo quando caminhava com outros peregrinos. Música é sempre alimento da alma. Canções infantis, músicas populares, enfim, o que vier à cabeça enquanto segue em frente.
Enfim, espero que o leitor possa de algum modo especial, viajar comigo nesse relato, e que seu Caminho também seja sempre bom, como foi e ainda continua sendo o meu.

1. Antes de Começar


Uma vez escrevi algo sobre o que se passa comigo durante as viagens. A circunstância que ao mesmo tempo nos limita os movimentos, no entanto nos dá uma das melhores condições possíveis para a reflexão. E isso me inspira a pegar o papel, e nele, fazer um despejo espontâneo de meus pensamentos num momento muito especial de minha vida.
Estou a caminho de iniciar a concretização de um sonho, e mesmo antes do seu real início, já sinto a necessidade de registrar algumas sensações, que algum dia quem sabe, poderão estar sendo compartilhadas.
Há algumas horas, saí do presente. Presente que não poderia ser melhor representado do que pelo aeroporto de uma cidade que é a representação do presente. Nova York tem luzes, cheiro, energia, fatos e sentimentos que se materializam no significado do tempo presente. E meu destino é exatamente um oposto temporal. Estou indo de alguma forma, a um espaço da terra que cintila o passado.
Quando Pelayo (um pastor da região da Galícia na Espanha) se admirou com o brilho exagerado das estrelas, que apontavam para um determinado lugar, e isso fez com que um bispo chamado Teodomiro decidisse escavar o local, que por “indicação divina” ou registro marcado no mármore, chegasse aos restos do apóstolo Thiago (Jacó); desde então, ninguém poderia imaginar que um caminho de fé pudesse então surgir, criando no seu entorno por centenas de quilômetros, um mundo de histórias ricas, cheias de arquitetura, monumentos, pessoas, personagens, e mais que tudo, uma paisagem inspiradora, que materializasse o passado e transformasse definitivamente quem por ele viesse a passar.
Mas quem sou eu, que sequer chegou ao início desse caminho, e já o descreve com tamanha pretensão?
Pois é, esse sou eu. Alguém que lentamente vai se transformando num peregrino a caminho de Santiago de Compostela, cheio de ansiedade positiva, com muitas expectativas diversas, e consciente do desafio inevitável que se encontra à minha frente. Mas repleto de alguma tranqüilidade divina que me soa inexplicável, e que me impulsiona a iniciar aqui o relato dessa pequena história, da qual, como um sonho colorido e complexo, espero nunca mais querer esquecer.

sábado, 30 de janeiro de 2010

2. Via férrea


Ainda em direção ao ponto de partida do Caminho francês para Santiago de Compostela, contemplo uma paisagem que mescla um pouco de verde fosco das oliveiras, montanhas de terra clara, e uma coleção de horizontes sem fim.
Fico imaginando muitas de coisas que estarei vivendo e tudo me parece ficção. Há poucos minutos fazia mais um de meus costumeiros controles de minha vida real através de meu telefone celular, e acabei me convencendo de qual tipo de peregrino estou me transformando.
Um peregrino, talvez moderno demais para tamanha carga histórica que esse caminho carrega, mas nem por isso menos entusiasmado.
Tanta empolgação parece estar presente nos vários quilogramas de minha mochila.
Durante a preparação, cansei de ouvir e ler sobre a necessidade de se diminuir ao máximo a carga a ser carregada. Desde o instante em que cogitei essa aventura, tive consciência de que embora não tivesse o menor indicador de sedentarismo, sabia ser dono de alguns pontos frágeis nas articulações e tendões. Por isso mesmo, sabia da prioridade para selecionar o essencial do essencial visando me poupar fisicamente.
Num determinado momento, cheguei a concluir de que tinha realmente conseguido atingir o equilíbrio representado por uma mochila leve, sem a percepção de estar deixando objetos essenciais.
Mas que nada! Quando vinha para a estação Atocha em Madrid, um pouco apressado, mas estrategicamente orientado e conduzido por um amigo de última hora e fundamental, o espanhol Pedro, percebi o quanto havia ultrapassado o limite anteriormente planejado. Minha mochila tinha um pouco mais de quatorze quilos, acreditem!
Não tenho dúvidas de que retirarei várias coisas de minha carga, mas pergunto se não poderia já ter feito essa racionalização antes de tomar o trem.
Penso, enquanto admiro a paisagem de fim de tarde. Penso, enquanto ouço a música clássica num fone de ouvido, e concluo que a melhor lição aprendida é mesmo aquela que foi vivida...
Tranqüilizo-me com a conclusão de que se estivesse com a carga leve, levaria por muito tempo a percepção de falta de algo, que mesmo sem importância, me pareceria essencial somente por sua ausência.
Por isso já sei o que farei nos próximos dias: Desfrutarei com prazer o fato de ter sido, embora criterioso, ainda exagerado na seleção das coisas que carregarei e, quando o peso começar a incomodar, juntarei tudo o que puder separar do estritamente necessário, e seguirei em frente, depois de despachar o “exagero” para algum lugar em Santiago.
Pra que sofrer por antecedência, não é mesmo?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

3. St. Jean Pied Port


E então, cheguei!
E cheguei também à conclusão que tenho o dever de incluir algumas dicas para aqueles que eventualmente resolvam abraçar esse desafio.
Muito do que vou dizer já é patrimônio de conhecimento testado, re-testado, e sempre aprovado por muitos e muito peregrinos; mas quem sabe, eu possa conseguir adicionar um detalhe novo aqui ou outro ali.
Bem, tomar um trem em Madrid com destino a Pamplona em classe turística custa 45 Euros. Mas, e depois?
De Pamplona a St. Jean Pied Port, onde começa o Caminho Francês, são aproximadamente mais 70 quilômetros.
No meu caso, segui uma indicação do pessoal da Associação dos Caminhantes de Santiago em São Paulo, onde consegui minha credencial de peregrino. Lá, eles me deram o telefone de um tal Sr. Antônio, ou “Andone”, que é como se fala seu nome no idioma basco. E, embora tenha telefonado quando já estava no trem para Pamplona, ele aceitou me levar e tudo correu muito bem.
O preço da viagem é salgado (72 Euros), mas quem sai pelo caminho tem que andar, não é mesmo? Isso seria uma adaptação incidental de: “quem sai na chuva tem que se molhar”, e escrevi assim sem pensar sobre o que uma chuva poderia me impactar durante o Caminho, o que logo no primeiro dia, conforme narrarei em seguida, eu pude constatar.
Sr. Antônio parecia gostar de levar peregrinos a St. Jean, e senti que ele se deliciava com minhas reações admiradas a cada nova informação que me passava. Foram muitas dicas, as quais espero aproveitar, e quando me dei conta, já havia chegado.
Passei pelo arco de St. Jaques e peguei o primeiro carimbo para minha credencial. Espero pegar muitos carimbos até chegar a Santiago.
Vale aqui uma explicação: A credencial, mencionada acima é o passaporte que dá direito ao uso dos albergues durante a caminhada, e a cada ponto alcançado, há o registro da passagem do peregrino que ocorre com um carimbo na credencial.
Os caminhantes a pé (também é possível fazer o caminho de bicicleta, ou mesmo a cavalo) que tiverem carimbos como evidências de terem percorrido, pelo menos, os últimos cem quilômetros antes de Santiago de Compostela, recebem a “Compostelana”. Trata-se um certificado escrito em latim, que formaliza o cumprimento do objetivo de chegar a Santiago de Compostela.
Sempre que o dia 25 de julho (Dia de Santiago) cai em um domingo, o peregrino que vai a Santiago, não necessitando ter feito a caminhada, recebe uma indulgência ao passar pela “Porta do perdão” na lateral da Catedral: todos os seus pecados serão perdoados.
No meu caso, quando lá chegar, passarei algumas vezes pela porta, evidentemente pensando em meus amigos pecadores. Acreditem!
St. Jean Pied Port tem uma parte histórica que é estonteantemente linda. A impressão é que foi tirada de um postal. A Via Citadelle é uma descida estreita com uma igreja cuja arquitetura se encaixa no conjunto de casas antigas e arcos imponentes.
Cruza-se um rio por uma ponte, e não posso imaginar que algum peregrino com máquina fotográfica não a tenha documentado. E por incrível que pareça, fiquei tão deslumbrado que não a fotografei como deveria.
Nesse primeiro dia, não fiquei em um Albergue. Eu estava cansado, e uma recomendação de última hora facilitou minha decisão.
Duro mesmo foi dialogar em francês tanto com Madame Adine, minha anfitriã, quanto com as pessoas que me atenderam no restaurante, onde jantei.
Bom, o que importa é que não estou com fome, e enquanto escrevo, estou aqui num quarto repleto de móveis e objetos antigos, aquecido e pronto para dormir como um bom e cansado peregrino.
Uma garoa forte bate no telhado aumentando ainda mais o meu sono.
Confesso que estou um pouco ansioso, prestes a começar logo essa minha aventura. Pensando bem, ela já começou, e eu nem percebi.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

4. Desafio dos Pirineus




Ainda no Brasil, pensei na possibilidade de que em algum dos dias pudesse chover. Tanto é verdade, que trouxe comigo duas capas de chuva.
A mais importante para minha mochila, e uma outra para o peregrino aqui.
Mas nunca, nunca mesmo, eu poderia imaginar o que me aconteceu nesse primeiro dia de viagem.
Ainda no escuro, saí e senti pela primeira vez a sensação da caminhada. Com o corpo ainda não acostumado ao peso, fui subindo em direção aos Pirineus.
Muitas pessoas começam o Caminho em Roncesvalles, um pequeno povoado que era o meu objetivo de hoje, mas eu realmente não poderia perder as paisagens deslumbrantes dessa primeira etapa.
O problema começou lá pelo quinto quilômetro. A chuva aumentou, e então toda a minha confiança acabou ficando depositada nas capas e num saquinho plástico à prova de chuva, que eu havia trazido para proteger meus objetos mais importantes.
O aumento da chuva veio acompanhado de um vento assustador. Em alguns momentos, confesso que tive medo de ser levado por ele montanha abaixo. Minha caminhada seguia solitária, e naqueles momentos cheguei até a rezar em voz alta para que eu, enfim, pudesse chegar ao meu primeiro destino.
Parei num albergue francês, e uma bebida quente ao lado de uma lareira me trouxe uma sensação de proteção muito valiosa, embora o idioma não me tivesse deixado chance para qualquer aconselhamento com o pessoal de lá.
Saí, reabastecido de nova confiança. Mas que nada! O vento só aumentava de intensidade e a subida não dava sinais de seu fim.
Logo depois, um carro que vinha descendo em sentido contrário parou, e cinco franceses em aparente pânico, falavam em tom preocupante sobre algo que pelo meu entendimento significava uma forte recomendação para meu retorno imediato, pois à minha frente, as condições estavam ainda piores.
Passei a eles a percepção clara de que aceitava a sua sugestão, e comecei a voltar.
Mas percebi que eles, principalmente uma senhora que estava no banco traseiro, eram já mais idosos, e certamente aquela condição atmosférica estava muito além de suas possibilidades.
Não tive dúvidas. Me virei novamente e retomei a caminhada.
Senti uma sensação de vitória contra mim mesmo, que me confortou muito naquele momento, mas o vento ficou tão intenso que a chuva começou a machucar meu rosto.
Já havia sentido a força da chuva em minha pele num dia em que fiz uma viagem de barco e, sem nenhuma proteção, tive que enfrentar uma chuva fria que quase me congelou. Mas naquela vez eu não estava sozinho; e agora não havia ninguém com quem dividir meu medo e meu cansaço.
Resisti o que pude, mas não havia mesmo a menor chance para seguir. Um pouco à frente avistei um carro parado na estrada e pedi ajuda.
Um rapaz francês que arranhava um pouco o idioma inglês permitiu que eu entrasse. Deu-me um gole de vinho, e então eu pedi a ele que me levasse a Roncesvalles. Se havia algum desafio na subida, conclui que eu já o havia vencido.
O veículo seguiu, mas ele não tinha a menor idéia para onde estava indo. Depois de rodar a esmo por algum tempo, perguntei a algumas pessoas sobre o destino e percebi que estava totalmente fora da direção correta; e assim minha única alternativa foi pedir ao rapaz que me levasse de volta a St. Jean Pied Port. Tive a impressão que nem isso ele sabia, mas vi uma placa saindo da estrada indicando “Roncesvaux”, o meu destino no idioma francês, claramente uma orientação salvadora para os peregrinos desorientados pelos montes Pirineus.
Justo naquele momento avistei alguns peregrinos subindo com suas bicicletas nos ombros e com muita, muitíssima dificuldade. Um deles viu seu saco de dormir voar com o vento, sem a menor chance de um resgate.
Tive um impulso, e mesmo sob aquela ventania, peguei minha mochila, me despedi de Greg, o meu salvador momentâneo , e fui atrás dos ciclistas. Naquela situação, eu era até mais rápido que eles e então, logo os alcancei. Eram da Galícia e seu sotaque galego quase era português aos meus ouvidos.
Sendo assim, fui em frente. Logo o vento parou e pude continuar sem nenhuma possível crise que me levasse a pensar novamente em desistência.
Cometi um grande erro ao passar por uma fonte, e não enchendo meu cantil, desprezei quantidade valiosa de água que me fez uma enorme falta posteriormente. Foi uma grande lição que eu aprendi com esse detalhe. Não passaria mais sede por menosprezar fonte alguma pelo Caminho.
A trilha fora da estrada penetrou por um bosque de beleza estupenda. O outono fazia com que o chão se transformasse num tapete de folhas vermelhas e amarelas e, embora nada pudesse fotografar para que minha máquina hermeticamente protegida não se molhasse, tentei registrar toda aquela beleza para sempre em minha memória.
Andando pelo bosque, tentei buscar um cajado qualquer. Mas, terei que esperar um pouco mais para encontrar o meu cajado de verdade. Diz a lenda, que ele estará me esperando por aí, em algum lugar.
Cheguei totalmente “encarangado”, uma palavra que minha mãe usou certa vez para descrever um frango todo encolhido de frio sob a chuva.
Porém, após um banho quente e reconfortante, após colocar minhas coisas molhadas na calefação, e após matar minha sede e minha fome, fui à missa dos peregrinos. Essa missa é um compromisso imperdível e ao seu final, já com minha concha (Vieira) que é símbolo do Caminho, recebi a benção especial, e então senti que já havia me tornado um legítimo peregrino.
Hoje, foi um dia repleto. A chuva, a persistência dela, o vento forte, a subida íngreme, e minha inexperiência foram um grande teste para mim. E estou feliz, pois sei que passei nesse teste, e com louvor.
Essa sensação me revigora e fico cheio de ansiedade para uma nova etapa, que começará amanhã por volta das oito horas da manhã, tomara sem tanta chuva.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

5. Primeira lição básica: Coisas demais!



O segundo dia começou bem. Acordei bem antes que meu despertador. Aproveitei que a calefação estava ligada e sequei o pouco que ainda estava molhado.
Tudo pronto. Pontualmente, às oito horas saí e logo vi que não estaria só. Vários peregrinos saiam no mesmo horário e todos também pareciam muito motivados.
Um pouco de dor nos ombros, na perna esquerda, mas logo que fiquei aquecido, passou.
Café da manhã é uma coisa que normalmente se toma pelo caminho, mas confesso que senti falta daquele verdadeiro pãozinho francês de ontem, mas de qualquer modo, o café com leite estava bem quente e saboroso.
Em poucos minutos, encontrei dois caminhantes, e dali em diante seguimos juntos rumo a Larrasoaña.
Francisco era espanhol de Almería no Mediterrâneo, e Andrea era um típico italiano de uma cidade próxima a Padova.
Havia outros: da Alemanha, do Canadá, e mesmo de Barcelona. Havia um cabeludo com pinta de artista exótico, e muitos outros tipos. Caminhamos vinte e sete quilômetros pelos bosques e campos da Navarra. Muitas fotos e alguns belos monumentos medievais. Passamos por uma ponte em Zubiris (Ponte Rábia), sobre a qual há uma lenda: todo animal raivoso que dá três voltas nessa ponte, se cura. Pois é. Será mesmo verdade? Creio que nunca saberei.
Terminamos esse longo dia completamente mortos de cansaço.
Tudo doí, mas estamos felizes por saber que amanhã chegaremos a Pamplona. Uma cidade grande com muitas atrações e opções.
Creio que aproveitarei para enviar algumas coisas para Santiago, pois sinto que essa ação é realmente necessária.
Estou com uns quinze quilos nessa mochila, que no final das contas é a minha casa. Sinto-me como um caracol cansado. Se não reduzir minha carga, as coisas ficarão muito difíceis mais à frente.
Mais um detalhe, amanhã espero já ter o meu cajado, algo que Francisco já tem e que chama carinhosamente de “mi bastón”.
Ah! Ia me esquecendo, pela primeira vez estou em um Albergue, ou “refúgio” como falam aqui. Um quarto com muitas camas beliche. Tudo limpinho e com uma recepção muito simpática do Sr. Santiago.
Enfim, uma situação nova, mas adequada e esperada para esse meu desafio. Faz falta uma maior privacidade, mas sobra a agradável convivência com pessoas alegres e abertas a um bom papo.
Fomos jantar em um pequeno bar, e a comida simples nos ajudou a recompor as energias. O proprietário nos contou ser um parente distante da famosa cantora brasileira Ivete Sangalo. Alguém a conhece?
Apesar de termos andando tanto, fizemos uma leve caminhada de alguns quilômetros para uma boa digestão. Haja disposição!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

6. Pamplona



Acordei às seis e vinte da manhã. Sem dúvida, o primeiro peregrino do albergue a abrir os olhos. Ainda matei um pouco de tempo até me levantar, mas com lanterna na cabeça, o que já havia experimentado ontem ao fazer minhas anotações, saí do quarto carregando todas as minhas coisas. Tive dificuldades para dormir, é claro. Não só pela novidade, mas também pelos roncos que estavam incluídos no pernoite.
Para dobrar meu saco de dormir, tive que investir uns dez minutos, e confesso que o pacote não ficou bom. Se minhas filhas bandeirantes tivessem assistido a cena, até consigo ver seus olhares de reprovação. Mas aos poucos, todos foram saindo e logo estávamos num bar próximo tomando nosso café da manhã, o “desayuno”. Resolvi logo cedo não pegar ainda o meu cajado. Estou na fase já prevista da eliminação de peso, e ter as mãos livres agora, me dá alguma flexibilidade até que o processo de simplificação da minha carga, para alívio de meus ombros, se consolide.
Andrea, o colega italiano, se despediu e foi à frente, em busca de seu caminho. Isso é bom por aqui; fazemos muitos contatos, conversamos, podemos até conviver mais tempo com alguém, mas numa hora ou outra, cada um toma seu rumo solitário, o seu próprio caminho.
Essa etapa foi leve. Doeu um pouco aqui, um pouco ali, mas já próximo à Pamplona, parei num posto de Correio e, rapidamente, despachei 2 Kg de minha carga para Santiago de Compostela. Poderia até mandar mais coisas, mas algumas roupas estavam úmidas e se as enviasse, teria problemas daqui a alguns dias. E um pouco mais leve, segui em frente.
Pamplona é uma cidade grande. Em comparação com os povoados anteriores, é enorme. Parques verdes, gente correndo, edifícios com detalhes arquitetônicos e, como sempre, muita história.
Acabei me hospedando num albergue central que um dia no passado, foi um convento. Quem cuida dele, são freiras. Tudo é simples como sempre, mas limpos. Não há secadora pra secagem das roupas, mas felizmente encontrei uma centrífuga, pequena, mas eficiente.
Francisco de Almería e eu saímos para explorar a cidade. Consegui descarregar as fotos digitais tiradas até agora, e fomos buscar um local para acessarmos a internet. Mandei um e-mail para casa com uma foto minha de peregrino já caracterizado.
A internet é surpreendente. Quando acessei o site do meu provedor, senti como se tivesse entrado no Brasil.
Mostrei meu “website” pessoal e alguns de meus textos ao Francisco. Ele está no negócio de perfumes, e demonstra ter bastante cultura. Fala muito sobre coisas relacionadas com história e arte. Pelo caminho, me contou sobre os templários, priorado de Sião, etc. Quem já leu o livro “O Código da Vinci”, o bestseller do momento, logo identificará o tema.
À noite, sob uma persistente garoa, fomos conhecer a catedral de Pamplona. Por fora, as colunas imponentes e a cor ocre pálida inibiam um pouco a sua beleza; mas ao entrarmos, a surpresa se estampou em nossos olhos. Internamente, embora ainda escondida pela pouca luz, não conseguimos evitar nossa admiração pelos detalhes góticos do teto. Muitas esculturas religiosas e afrescos impressionantes. A Santa Ceia com o apóstolo João muito mais próximo de Jesus, e um São Cristóvão muito respeitoso, foram as pinturas que mais nos chamaram a atenção.
Francisco ressaltou alguns dos símbolos dos templários, como as cruzes nas colunas e no teto. Sobre o altar, a pintura ilustrava um céu imensamente estrelado.
Havia uma cerimônia religiosa em andamento. Um “Terço” cantado em um ritual onde diversas pessoas divididas em filas masculinas e femininas, todas com uma idade mais avançada, cantavam acompanhadas por um órgão de som deslumbrante. Caminhavam seguindo um objeto chamado “esplendor”, e rezavam a Ave Maria e algo que me pareceu uma “ladainha”.
Próximo ao altar, havia uma lápide de um rei católico espanhol, Carlos V, junto sua rainha. Algo realmente marcante.
Estou um pouco resfriado e a garoa me preocupa um pouco, mas sigo em frente o meu caminho.
Hoje comi minha primeira “Paella” dessa viagem. Uma delícia espanhola, como sempre. Fui conhecer o local onde há uma famosa corrida anual de touros pelas ruas, e pude desfrutar de forma rápida mas plena, a beleza antiga que tem a histórica cidade de Pamplona.
As luzes já se apagaram, e é chegada a hora de apagar também a pequena luz de minha lanterna.