domingo, 31 de janeiro de 2010

Introdução


Começo dizendo que esta é uma história simples, mas real, e que descreve, talvez, uma de minhas maiores aventuras.
O meu Caminho de Santiago de Compostela.
Uma viagem que teve um destino definido, mas que me levou profundamente a uma outra viagem para dentro de mim mesmo, numa vivência singular de autoconhecimento.
Com o título: “Buscando Estrelas”, montei pedacinho por pedacinho esse diário escrito ao fim de cada etapa diária. Dentro de meu saco de dormir, e com uma lanterninha acesa presa à cabeça para não acordar meus companheiros de albergue, ou durante as pausas necessárias para um descanso merecido, ou mesmo em qualquer lugar onde pude rabiscar algo que queria eternizar de alguma forma.
Aqui, há um pouco do que se registrou em minha memória enquanto caminhava, e incluo também algumas imagens capturadas pelas lentes de minha máquina fotográfica digital, para que vejam um pouco do que meus olhos se deliciaram em ver.
Fui aprendendo muito a cada dia como todo peregrino, e gostaria de concluir essa introdução com um resumo das principais lições que se fixaram em minha mente e que, sem nenhuma pretensão exagerada, deveria ser considerado seriamente por qualquer leitor que se entusiasme, e um dia resolva buscar Santiago de Compostela.
Ao final, chamei essa lista de “10 Mandamentos do Peregrino”. Embora não acrescentem grandes novidades ao imenso banco de informações disponíveis sobre o Caminho, são ensinamentos realmente comprovados por mim mesmo, às vezes de forma dolorida, e em outras vezes de forma até divertida.

São estes os meus dez mandamentos:

1. Cada um faz o seu próprio Caminho!
Alguns fazem o Caminho de modo solitário, sem qualquer coisa que lembre a civilização. Dormem em albergues rústicos e sem nenhuma infraestrutura, quem sabe na busca de um isolamento que os levem a um maior aprofundamento em si mesmos.
Outros fazem em grupo, com carros de apoio, dormindo em hostais (pequenos e confortáveis hotéis), com telefones celulares, e conectados à internet.
Mas enfim, todos são peregrinos, e ao final acabam encontrando o que procuram, de um jeito ou de outro.
Por isso, não julgar é o primeiro mandamento.

2. Estude antes e detalhadamente cada etapa do percurso
Há tantos modos de saber para onde devemos ir a cada etapa, e é algo inaceitável iniciá-la a cada dia sem uma prévia e rápida avaliação. Onde será a próxima parada? Quais os pontos a serem vistos com mais atenção? Há fontes de água potável? Há lugares onde se pode comer? Os trechos são urbanos ou rurais? Há muitas subidas?

3. As Fontes são valiosas. Beba muita água e encha sempre o cantil
Com sede, não se aproveita a caminhada. Água é vida!

4. Cuide muito bem dos seus pés!
Seus pés serão fundamentais para o sucesso da empreitada, e por esse motivo, deverão ser tratados como jóias durante todo o tempo. Vi muita gente boa e forte desistindo por causa deles.

5. Em certos momentos, nada tem mais valor que uma seta amarela!
O Caminho é todo sinalizado com placas e setas amarelas. Às vezes, chegar ou não chegar depende exclusivamente da atenção do peregrino em encontrá-las indicando a direção certa.

6. Caso tenha dúvida em manter algo na mochila, tire-o imediatamente.
Por mínimo que seja, andar com qualquer peso acima do estritamente necessário é pura ignorância. A mochila é a parte móvel da casa do peregrino ao longo do Caminho, e vai às suas costas fazendo valer a força da gravidade. Por isso, quanto mais leve, melhor o aproveitamento de tudo o que se vive, e de tudo o que se vê.
A grande lição desse mandamento e que poderia ser aprendida por todos é: Precisamos de muito menos do que temos para viver!

7. Depois da Chuva vem o Sol. Depois do Sol vem a Chuva
Olhar a previsão do tempo à noite e pela manhã não é ruim. Mas é algo que tenta nos fazer acreditar sermos capazes de influenciar o que está totalmente fora de nosso controle: a natureza.
Por isso, o peregrino deve ter uma boa proteção (capa, agasalho, luvas, etc.), mas mais que isso, ele deve seguir em frente, pois um sol brilhante e maravilhoso o espera atrás de cada nuvem escura e passageira. É tudo uma questão de tempo e perseverança.

8. Mesmo que tenha memória fotográfica, fotografe!
Tem gente que diz: Minhas câmeras são os meus olhos, e meus álbuns são minhas lembranças.
Definitivamente, não concordo com isso. Não importa se a câmera é digital ou descartável. Fotos de uma aventura tão grandiosa como essa são registros que fazem parte da contrapartida do peregrino para com os seus entes queridos, muitas vezes impossibilitados de se empreender num desafio dessa dimensão. Mas que torcem pelo seu êxito, e merecem o prêmio de poder escutar as estórias engraçadas da viagem, vendo lindas fotografias, e com uma taça de um bom vinho nas mãos. Assim, também se sentem um pouco peregrinos.

9. Respeite os sinais que seu corpo dá!
Alguns se cuidam até demais, e outros são preguiçosos. Mas, alguns teimam em ultrapassar seus próprios limites. Esse mandamento é destinado a esses últimos, que se empolgam e acabam sendo obrigados a desistir antes do final, unicamente por não captar um sinal do corpo para um descanso necessário, ou mesmo para um ritmo mais lento e mais adequado.

10. Conheça sempre muitos peregrinos!
O grande ganho social da caminhada é conhecer pessoas de todas as partes do mundo, entrar em contato com todo o conhecimento e toda a sabedoria que elas trazem. Mesmo uma opção de caminho solitário não deve prescindir dessa experiência maravilhosa e que tanto nos pode ensinar.

Além desses aprendizados, vale ao peregrino saber um pouco sobre algumas coisas e objetos, que deverão estar na mochila. E por exclusão, os que não deverão estar.
Alguns são básicos e imprescindíveis. Outros são pelo menos muito úteis, e certamente serão usados durante o percurso. São eles:
1. Cremes hidratantes e pomadas para mãos e pés
2. Tornozeleira
3. Toalhas absorventes e/ou fraldas de pano
4. Lanterna de cabeça
5. Estojo (pequeno) de primeiros socorros (o conteúdo depende de cada um)
6. Três calças (daquelas próprias para Caminhada, que podem se transformar em bermudas), três camisetas. Três cuecas (ou calcinhas para as mulheres), três pares de meias grossas apropriadas para caminhadas, e dois pares de meias de tecido mais fino (use sempre a grossa sobre a fina), um par de botas (serão companheiras até se acabarem pelo uso), um par de tênis (ou papete), e uma jaqueta.
7. Se estiver frio, use muita proteção para mãos, cabeça, pés, enfim, tudo que ficar exposto.
8. Uma tesoura pequena, Band-aid (lá eles têm um tipo especial chamado COMPEED que protege as bolhas de forma inacreditável). Embora tenha comprado, não precisei, mas fui exceção.
9. Protetor solar para pele e labial
10. Capa de chuva, (calça e blusa) e uma só para a mochila.
11. Sacos plásticos
12. Pochete e um indispensável saco hermético para aquilo que realmente não pode molhar (documentos, etc.).
13. Celular. Sim! Isso mesmo, quem tiver condições deve levar um. Em algumas circunstâncias pode ajudar, e muito. (Muitos irão me criticar, mas quando isso acontecer, por favor, leiam o primeiro mandamento, logo acima).
14. Relógio
15. O cajado será um grande companheiro, mas encontre o seu durante a jornada.

Vale mencionar que algumas cantigas me fizeram companhia em vários momentos. Cantei muito quando estava sozinho, e mesmo quando caminhava com outros peregrinos. Música é sempre alimento da alma. Canções infantis, músicas populares, enfim, o que vier à cabeça enquanto segue em frente.
Enfim, espero que o leitor possa de algum modo especial, viajar comigo nesse relato, e que seu Caminho também seja sempre bom, como foi e ainda continua sendo o meu.

1. Antes de Começar


Uma vez escrevi algo sobre o que se passa comigo durante as viagens. A circunstância que ao mesmo tempo nos limita os movimentos, no entanto nos dá uma das melhores condições possíveis para a reflexão. E isso me inspira a pegar o papel, e nele, fazer um despejo espontâneo de meus pensamentos num momento muito especial de minha vida.
Estou a caminho de iniciar a concretização de um sonho, e mesmo antes do seu real início, já sinto a necessidade de registrar algumas sensações, que algum dia quem sabe, poderão estar sendo compartilhadas.
Há algumas horas, saí do presente. Presente que não poderia ser melhor representado do que pelo aeroporto de uma cidade que é a representação do presente. Nova York tem luzes, cheiro, energia, fatos e sentimentos que se materializam no significado do tempo presente. E meu destino é exatamente um oposto temporal. Estou indo de alguma forma, a um espaço da terra que cintila o passado.
Quando Pelayo (um pastor da região da Galícia na Espanha) se admirou com o brilho exagerado das estrelas, que apontavam para um determinado lugar, e isso fez com que um bispo chamado Teodomiro decidisse escavar o local, que por “indicação divina” ou registro marcado no mármore, chegasse aos restos do apóstolo Thiago (Jacó); desde então, ninguém poderia imaginar que um caminho de fé pudesse então surgir, criando no seu entorno por centenas de quilômetros, um mundo de histórias ricas, cheias de arquitetura, monumentos, pessoas, personagens, e mais que tudo, uma paisagem inspiradora, que materializasse o passado e transformasse definitivamente quem por ele viesse a passar.
Mas quem sou eu, que sequer chegou ao início desse caminho, e já o descreve com tamanha pretensão?
Pois é, esse sou eu. Alguém que lentamente vai se transformando num peregrino a caminho de Santiago de Compostela, cheio de ansiedade positiva, com muitas expectativas diversas, e consciente do desafio inevitável que se encontra à minha frente. Mas repleto de alguma tranqüilidade divina que me soa inexplicável, e que me impulsiona a iniciar aqui o relato dessa pequena história, da qual, como um sonho colorido e complexo, espero nunca mais querer esquecer.

sábado, 30 de janeiro de 2010

2. Via férrea


Ainda em direção ao ponto de partida do Caminho francês para Santiago de Compostela, contemplo uma paisagem que mescla um pouco de verde fosco das oliveiras, montanhas de terra clara, e uma coleção de horizontes sem fim.
Fico imaginando muitas de coisas que estarei vivendo e tudo me parece ficção. Há poucos minutos fazia mais um de meus costumeiros controles de minha vida real através de meu telefone celular, e acabei me convencendo de qual tipo de peregrino estou me transformando.
Um peregrino, talvez moderno demais para tamanha carga histórica que esse caminho carrega, mas nem por isso menos entusiasmado.
Tanta empolgação parece estar presente nos vários quilogramas de minha mochila.
Durante a preparação, cansei de ouvir e ler sobre a necessidade de se diminuir ao máximo a carga a ser carregada. Desde o instante em que cogitei essa aventura, tive consciência de que embora não tivesse o menor indicador de sedentarismo, sabia ser dono de alguns pontos frágeis nas articulações e tendões. Por isso mesmo, sabia da prioridade para selecionar o essencial do essencial visando me poupar fisicamente.
Num determinado momento, cheguei a concluir de que tinha realmente conseguido atingir o equilíbrio representado por uma mochila leve, sem a percepção de estar deixando objetos essenciais.
Mas que nada! Quando vinha para a estação Atocha em Madrid, um pouco apressado, mas estrategicamente orientado e conduzido por um amigo de última hora e fundamental, o espanhol Pedro, percebi o quanto havia ultrapassado o limite anteriormente planejado. Minha mochila tinha um pouco mais de quatorze quilos, acreditem!
Não tenho dúvidas de que retirarei várias coisas de minha carga, mas pergunto se não poderia já ter feito essa racionalização antes de tomar o trem.
Penso, enquanto admiro a paisagem de fim de tarde. Penso, enquanto ouço a música clássica num fone de ouvido, e concluo que a melhor lição aprendida é mesmo aquela que foi vivida...
Tranqüilizo-me com a conclusão de que se estivesse com a carga leve, levaria por muito tempo a percepção de falta de algo, que mesmo sem importância, me pareceria essencial somente por sua ausência.
Por isso já sei o que farei nos próximos dias: Desfrutarei com prazer o fato de ter sido, embora criterioso, ainda exagerado na seleção das coisas que carregarei e, quando o peso começar a incomodar, juntarei tudo o que puder separar do estritamente necessário, e seguirei em frente, depois de despachar o “exagero” para algum lugar em Santiago.
Pra que sofrer por antecedência, não é mesmo?

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

3. St. Jean Pied Port


E então, cheguei!
E cheguei também à conclusão que tenho o dever de incluir algumas dicas para aqueles que eventualmente resolvam abraçar esse desafio.
Muito do que vou dizer já é patrimônio de conhecimento testado, re-testado, e sempre aprovado por muitos e muito peregrinos; mas quem sabe, eu possa conseguir adicionar um detalhe novo aqui ou outro ali.
Bem, tomar um trem em Madrid com destino a Pamplona em classe turística custa 45 Euros. Mas, e depois?
De Pamplona a St. Jean Pied Port, onde começa o Caminho Francês, são aproximadamente mais 70 quilômetros.
No meu caso, segui uma indicação do pessoal da Associação dos Caminhantes de Santiago em São Paulo, onde consegui minha credencial de peregrino. Lá, eles me deram o telefone de um tal Sr. Antônio, ou “Andone”, que é como se fala seu nome no idioma basco. E, embora tenha telefonado quando já estava no trem para Pamplona, ele aceitou me levar e tudo correu muito bem.
O preço da viagem é salgado (72 Euros), mas quem sai pelo caminho tem que andar, não é mesmo? Isso seria uma adaptação incidental de: “quem sai na chuva tem que se molhar”, e escrevi assim sem pensar sobre o que uma chuva poderia me impactar durante o Caminho, o que logo no primeiro dia, conforme narrarei em seguida, eu pude constatar.
Sr. Antônio parecia gostar de levar peregrinos a St. Jean, e senti que ele se deliciava com minhas reações admiradas a cada nova informação que me passava. Foram muitas dicas, as quais espero aproveitar, e quando me dei conta, já havia chegado.
Passei pelo arco de St. Jaques e peguei o primeiro carimbo para minha credencial. Espero pegar muitos carimbos até chegar a Santiago.
Vale aqui uma explicação: A credencial, mencionada acima é o passaporte que dá direito ao uso dos albergues durante a caminhada, e a cada ponto alcançado, há o registro da passagem do peregrino que ocorre com um carimbo na credencial.
Os caminhantes a pé (também é possível fazer o caminho de bicicleta, ou mesmo a cavalo) que tiverem carimbos como evidências de terem percorrido, pelo menos, os últimos cem quilômetros antes de Santiago de Compostela, recebem a “Compostelana”. Trata-se um certificado escrito em latim, que formaliza o cumprimento do objetivo de chegar a Santiago de Compostela.
Sempre que o dia 25 de julho (Dia de Santiago) cai em um domingo, o peregrino que vai a Santiago, não necessitando ter feito a caminhada, recebe uma indulgência ao passar pela “Porta do perdão” na lateral da Catedral: todos os seus pecados serão perdoados.
No meu caso, quando lá chegar, passarei algumas vezes pela porta, evidentemente pensando em meus amigos pecadores. Acreditem!
St. Jean Pied Port tem uma parte histórica que é estonteantemente linda. A impressão é que foi tirada de um postal. A Via Citadelle é uma descida estreita com uma igreja cuja arquitetura se encaixa no conjunto de casas antigas e arcos imponentes.
Cruza-se um rio por uma ponte, e não posso imaginar que algum peregrino com máquina fotográfica não a tenha documentado. E por incrível que pareça, fiquei tão deslumbrado que não a fotografei como deveria.
Nesse primeiro dia, não fiquei em um Albergue. Eu estava cansado, e uma recomendação de última hora facilitou minha decisão.
Duro mesmo foi dialogar em francês tanto com Madame Adine, minha anfitriã, quanto com as pessoas que me atenderam no restaurante, onde jantei.
Bom, o que importa é que não estou com fome, e enquanto escrevo, estou aqui num quarto repleto de móveis e objetos antigos, aquecido e pronto para dormir como um bom e cansado peregrino.
Uma garoa forte bate no telhado aumentando ainda mais o meu sono.
Confesso que estou um pouco ansioso, prestes a começar logo essa minha aventura. Pensando bem, ela já começou, e eu nem percebi.

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

4. Desafio dos Pirineus




Ainda no Brasil, pensei na possibilidade de que em algum dos dias pudesse chover. Tanto é verdade, que trouxe comigo duas capas de chuva.
A mais importante para minha mochila, e uma outra para o peregrino aqui.
Mas nunca, nunca mesmo, eu poderia imaginar o que me aconteceu nesse primeiro dia de viagem.
Ainda no escuro, saí e senti pela primeira vez a sensação da caminhada. Com o corpo ainda não acostumado ao peso, fui subindo em direção aos Pirineus.
Muitas pessoas começam o Caminho em Roncesvalles, um pequeno povoado que era o meu objetivo de hoje, mas eu realmente não poderia perder as paisagens deslumbrantes dessa primeira etapa.
O problema começou lá pelo quinto quilômetro. A chuva aumentou, e então toda a minha confiança acabou ficando depositada nas capas e num saquinho plástico à prova de chuva, que eu havia trazido para proteger meus objetos mais importantes.
O aumento da chuva veio acompanhado de um vento assustador. Em alguns momentos, confesso que tive medo de ser levado por ele montanha abaixo. Minha caminhada seguia solitária, e naqueles momentos cheguei até a rezar em voz alta para que eu, enfim, pudesse chegar ao meu primeiro destino.
Parei num albergue francês, e uma bebida quente ao lado de uma lareira me trouxe uma sensação de proteção muito valiosa, embora o idioma não me tivesse deixado chance para qualquer aconselhamento com o pessoal de lá.
Saí, reabastecido de nova confiança. Mas que nada! O vento só aumentava de intensidade e a subida não dava sinais de seu fim.
Logo depois, um carro que vinha descendo em sentido contrário parou, e cinco franceses em aparente pânico, falavam em tom preocupante sobre algo que pelo meu entendimento significava uma forte recomendação para meu retorno imediato, pois à minha frente, as condições estavam ainda piores.
Passei a eles a percepção clara de que aceitava a sua sugestão, e comecei a voltar.
Mas percebi que eles, principalmente uma senhora que estava no banco traseiro, eram já mais idosos, e certamente aquela condição atmosférica estava muito além de suas possibilidades.
Não tive dúvidas. Me virei novamente e retomei a caminhada.
Senti uma sensação de vitória contra mim mesmo, que me confortou muito naquele momento, mas o vento ficou tão intenso que a chuva começou a machucar meu rosto.
Já havia sentido a força da chuva em minha pele num dia em que fiz uma viagem de barco e, sem nenhuma proteção, tive que enfrentar uma chuva fria que quase me congelou. Mas naquela vez eu não estava sozinho; e agora não havia ninguém com quem dividir meu medo e meu cansaço.
Resisti o que pude, mas não havia mesmo a menor chance para seguir. Um pouco à frente avistei um carro parado na estrada e pedi ajuda.
Um rapaz francês que arranhava um pouco o idioma inglês permitiu que eu entrasse. Deu-me um gole de vinho, e então eu pedi a ele que me levasse a Roncesvalles. Se havia algum desafio na subida, conclui que eu já o havia vencido.
O veículo seguiu, mas ele não tinha a menor idéia para onde estava indo. Depois de rodar a esmo por algum tempo, perguntei a algumas pessoas sobre o destino e percebi que estava totalmente fora da direção correta; e assim minha única alternativa foi pedir ao rapaz que me levasse de volta a St. Jean Pied Port. Tive a impressão que nem isso ele sabia, mas vi uma placa saindo da estrada indicando “Roncesvaux”, o meu destino no idioma francês, claramente uma orientação salvadora para os peregrinos desorientados pelos montes Pirineus.
Justo naquele momento avistei alguns peregrinos subindo com suas bicicletas nos ombros e com muita, muitíssima dificuldade. Um deles viu seu saco de dormir voar com o vento, sem a menor chance de um resgate.
Tive um impulso, e mesmo sob aquela ventania, peguei minha mochila, me despedi de Greg, o meu salvador momentâneo , e fui atrás dos ciclistas. Naquela situação, eu era até mais rápido que eles e então, logo os alcancei. Eram da Galícia e seu sotaque galego quase era português aos meus ouvidos.
Sendo assim, fui em frente. Logo o vento parou e pude continuar sem nenhuma possível crise que me levasse a pensar novamente em desistência.
Cometi um grande erro ao passar por uma fonte, e não enchendo meu cantil, desprezei quantidade valiosa de água que me fez uma enorme falta posteriormente. Foi uma grande lição que eu aprendi com esse detalhe. Não passaria mais sede por menosprezar fonte alguma pelo Caminho.
A trilha fora da estrada penetrou por um bosque de beleza estupenda. O outono fazia com que o chão se transformasse num tapete de folhas vermelhas e amarelas e, embora nada pudesse fotografar para que minha máquina hermeticamente protegida não se molhasse, tentei registrar toda aquela beleza para sempre em minha memória.
Andando pelo bosque, tentei buscar um cajado qualquer. Mas, terei que esperar um pouco mais para encontrar o meu cajado de verdade. Diz a lenda, que ele estará me esperando por aí, em algum lugar.
Cheguei totalmente “encarangado”, uma palavra que minha mãe usou certa vez para descrever um frango todo encolhido de frio sob a chuva.
Porém, após um banho quente e reconfortante, após colocar minhas coisas molhadas na calefação, e após matar minha sede e minha fome, fui à missa dos peregrinos. Essa missa é um compromisso imperdível e ao seu final, já com minha concha (Vieira) que é símbolo do Caminho, recebi a benção especial, e então senti que já havia me tornado um legítimo peregrino.
Hoje, foi um dia repleto. A chuva, a persistência dela, o vento forte, a subida íngreme, e minha inexperiência foram um grande teste para mim. E estou feliz, pois sei que passei nesse teste, e com louvor.
Essa sensação me revigora e fico cheio de ansiedade para uma nova etapa, que começará amanhã por volta das oito horas da manhã, tomara sem tanta chuva.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

5. Primeira lição básica: Coisas demais!



O segundo dia começou bem. Acordei bem antes que meu despertador. Aproveitei que a calefação estava ligada e sequei o pouco que ainda estava molhado.
Tudo pronto. Pontualmente, às oito horas saí e logo vi que não estaria só. Vários peregrinos saiam no mesmo horário e todos também pareciam muito motivados.
Um pouco de dor nos ombros, na perna esquerda, mas logo que fiquei aquecido, passou.
Café da manhã é uma coisa que normalmente se toma pelo caminho, mas confesso que senti falta daquele verdadeiro pãozinho francês de ontem, mas de qualquer modo, o café com leite estava bem quente e saboroso.
Em poucos minutos, encontrei dois caminhantes, e dali em diante seguimos juntos rumo a Larrasoaña.
Francisco era espanhol de Almería no Mediterrâneo, e Andrea era um típico italiano de uma cidade próxima a Padova.
Havia outros: da Alemanha, do Canadá, e mesmo de Barcelona. Havia um cabeludo com pinta de artista exótico, e muitos outros tipos. Caminhamos vinte e sete quilômetros pelos bosques e campos da Navarra. Muitas fotos e alguns belos monumentos medievais. Passamos por uma ponte em Zubiris (Ponte Rábia), sobre a qual há uma lenda: todo animal raivoso que dá três voltas nessa ponte, se cura. Pois é. Será mesmo verdade? Creio que nunca saberei.
Terminamos esse longo dia completamente mortos de cansaço.
Tudo doí, mas estamos felizes por saber que amanhã chegaremos a Pamplona. Uma cidade grande com muitas atrações e opções.
Creio que aproveitarei para enviar algumas coisas para Santiago, pois sinto que essa ação é realmente necessária.
Estou com uns quinze quilos nessa mochila, que no final das contas é a minha casa. Sinto-me como um caracol cansado. Se não reduzir minha carga, as coisas ficarão muito difíceis mais à frente.
Mais um detalhe, amanhã espero já ter o meu cajado, algo que Francisco já tem e que chama carinhosamente de “mi bastón”.
Ah! Ia me esquecendo, pela primeira vez estou em um Albergue, ou “refúgio” como falam aqui. Um quarto com muitas camas beliche. Tudo limpinho e com uma recepção muito simpática do Sr. Santiago.
Enfim, uma situação nova, mas adequada e esperada para esse meu desafio. Faz falta uma maior privacidade, mas sobra a agradável convivência com pessoas alegres e abertas a um bom papo.
Fomos jantar em um pequeno bar, e a comida simples nos ajudou a recompor as energias. O proprietário nos contou ser um parente distante da famosa cantora brasileira Ivete Sangalo. Alguém a conhece?
Apesar de termos andando tanto, fizemos uma leve caminhada de alguns quilômetros para uma boa digestão. Haja disposição!

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

6. Pamplona



Acordei às seis e vinte da manhã. Sem dúvida, o primeiro peregrino do albergue a abrir os olhos. Ainda matei um pouco de tempo até me levantar, mas com lanterna na cabeça, o que já havia experimentado ontem ao fazer minhas anotações, saí do quarto carregando todas as minhas coisas. Tive dificuldades para dormir, é claro. Não só pela novidade, mas também pelos roncos que estavam incluídos no pernoite.
Para dobrar meu saco de dormir, tive que investir uns dez minutos, e confesso que o pacote não ficou bom. Se minhas filhas bandeirantes tivessem assistido a cena, até consigo ver seus olhares de reprovação. Mas aos poucos, todos foram saindo e logo estávamos num bar próximo tomando nosso café da manhã, o “desayuno”. Resolvi logo cedo não pegar ainda o meu cajado. Estou na fase já prevista da eliminação de peso, e ter as mãos livres agora, me dá alguma flexibilidade até que o processo de simplificação da minha carga, para alívio de meus ombros, se consolide.
Andrea, o colega italiano, se despediu e foi à frente, em busca de seu caminho. Isso é bom por aqui; fazemos muitos contatos, conversamos, podemos até conviver mais tempo com alguém, mas numa hora ou outra, cada um toma seu rumo solitário, o seu próprio caminho.
Essa etapa foi leve. Doeu um pouco aqui, um pouco ali, mas já próximo à Pamplona, parei num posto de Correio e, rapidamente, despachei 2 Kg de minha carga para Santiago de Compostela. Poderia até mandar mais coisas, mas algumas roupas estavam úmidas e se as enviasse, teria problemas daqui a alguns dias. E um pouco mais leve, segui em frente.
Pamplona é uma cidade grande. Em comparação com os povoados anteriores, é enorme. Parques verdes, gente correndo, edifícios com detalhes arquitetônicos e, como sempre, muita história.
Acabei me hospedando num albergue central que um dia no passado, foi um convento. Quem cuida dele, são freiras. Tudo é simples como sempre, mas limpos. Não há secadora pra secagem das roupas, mas felizmente encontrei uma centrífuga, pequena, mas eficiente.
Francisco de Almería e eu saímos para explorar a cidade. Consegui descarregar as fotos digitais tiradas até agora, e fomos buscar um local para acessarmos a internet. Mandei um e-mail para casa com uma foto minha de peregrino já caracterizado.
A internet é surpreendente. Quando acessei o site do meu provedor, senti como se tivesse entrado no Brasil.
Mostrei meu “website” pessoal e alguns de meus textos ao Francisco. Ele está no negócio de perfumes, e demonstra ter bastante cultura. Fala muito sobre coisas relacionadas com história e arte. Pelo caminho, me contou sobre os templários, priorado de Sião, etc. Quem já leu o livro “O Código da Vinci”, o bestseller do momento, logo identificará o tema.
À noite, sob uma persistente garoa, fomos conhecer a catedral de Pamplona. Por fora, as colunas imponentes e a cor ocre pálida inibiam um pouco a sua beleza; mas ao entrarmos, a surpresa se estampou em nossos olhos. Internamente, embora ainda escondida pela pouca luz, não conseguimos evitar nossa admiração pelos detalhes góticos do teto. Muitas esculturas religiosas e afrescos impressionantes. A Santa Ceia com o apóstolo João muito mais próximo de Jesus, e um São Cristóvão muito respeitoso, foram as pinturas que mais nos chamaram a atenção.
Francisco ressaltou alguns dos símbolos dos templários, como as cruzes nas colunas e no teto. Sobre o altar, a pintura ilustrava um céu imensamente estrelado.
Havia uma cerimônia religiosa em andamento. Um “Terço” cantado em um ritual onde diversas pessoas divididas em filas masculinas e femininas, todas com uma idade mais avançada, cantavam acompanhadas por um órgão de som deslumbrante. Caminhavam seguindo um objeto chamado “esplendor”, e rezavam a Ave Maria e algo que me pareceu uma “ladainha”.
Próximo ao altar, havia uma lápide de um rei católico espanhol, Carlos V, junto sua rainha. Algo realmente marcante.
Estou um pouco resfriado e a garoa me preocupa um pouco, mas sigo em frente o meu caminho.
Hoje comi minha primeira “Paella” dessa viagem. Uma delícia espanhola, como sempre. Fui conhecer o local onde há uma famosa corrida anual de touros pelas ruas, e pude desfrutar de forma rápida mas plena, a beleza antiga que tem a histórica cidade de Pamplona.
As luzes já se apagaram, e é chegada a hora de apagar também a pequena luz de minha lanterna.

segunda-feira, 25 de janeiro de 2010

7. Santa Maria de Eunate



Dormi razoavelmente bem, e nossa saída de Pamplona ocorreu sem chuva.
Logo cedo, o assunto foi o relacionamento entre casais. Como é difícil compreendê-los!
Entre nós, há um casal de jovens portugueses que chama a nossa atenção. Alda e Eurico são realmente bem jovens. Ela já morou no Brasil.
Parecem ser bem diferentes um do outro, e é difícil imaginar como podem estar juntos. Pois é, mas estão.
Ela parece gostar de controlar as coisas, aliás como boa parte das mulheres. E ele, apesar de não parecer gostar muito do contato com outras pessoas, é simpático na interação direta.
O que tomou bom tempo da conversa desse início de manhã, foi a tentativa de entender as características das pessoas, de modo que possam viver um relacionamento a dois.
Nossa conclusão alcançada em consenso após muita discordância indicou a constante necessidade de haver uma convivência viva, com discussão, com intensidade; algo nada fácil, mas essencial.
Porém, hoje minha intenção principal é falar sobre outra coisa, com a qual convivi durante boa parte do dia, ou seja: A DOR.
Meu leitor nem pode sequer imaginar o que é carregar mais de dez quilos nas costas por vinte e sete quilômetros num único dia.
Subindo montanhas, olhando para trás e vendo as cidades se distanciando aos poucos até desaparecerem totalmente.
Descer caminhos cheios de pedras, como fizemos no Monte do Perdão. Sentir dor nos ombros e descobrir casualmente que um simples aperto nas alças mochila já pode resolver um pouco a situação, pelo menos por algum tempo.
Parece incrível, mas tive que andar mais de três dias pra perceber que um simples afrouxamento nas alças da mochila pode afetar as costas, e que um pequeno deslocamento do centro de massa do conjunto formado pelo corpo e a mochila sobrecarrega e destrói os tendões dos pés. Pois é. Descobri isso na prática.
Descobri também um tipo de curativo (chamado aqui de “COMPEED”) que se transforma numa segunda pele e esconde as bolhas.
Inventei, também, alguns mecanismos de controle para esquecer das minhas dores, e quando tudo parecia mesmo estar sob total controle, voltava a senti-las com louca intensidade.
Mas o mais interessante mesmo era o ritual de chegada nos albergues.
Carimbo na credencial, definição da cama beliche, ducha, secar o corpo com pano absorvente e fraldas de tecido (que saudades de minha grande toalha azul!), lavar roupas, e durante todo esse tempo, pensar e imaginar as aventuras que estão por vir, e experimentar apaixonadamente algumas imagens e experiências que uma viagem dessas pode nos proporcionar.
Após vinte e três quilômetros, entramos num acesso que nos levou a um trecho do Caminho Aragones em direção a Santiago de Compostela. Esse caminho que se inicia em outra parte da França, em Puerto Somport a 1600 metros de altitude, se junta ao Caminho Francês em Puente la Reina, nosso destino de hoje.
O motivo principal da passagem por esse trecho, além é claro de poder citar aqui que também passei pelo Caminho Aragones, foi poder conhecer uma eremita que no passado foi possessão dos templários. Santa Maria de Eunate é o nome de uma Santa cuja imagem muito delicada apresenta uma virgem com seu filho mantido em seu colo bem à frente.
Cores vivas dos mantos em vermelho e azul, olhar firme para frente em um altar simples.
A arquitetura octogonal é típica dos templários. Telhado romano, tudo em pedra, com um crucifixo pequeno e praticamente simbólico no canto esquerdo do altar.
De uma porta fechada à direita, vinha uma música suave. Depositei minha mochila sobre um banco rústico de madeira, e após orar por alguns momentos, iniciei um relaxamento que me fez cair num sono leve sobre meus próprios braços.
Na saída, demos uma volta completa naquela pequena, mas bela igreja, observando as pedras que a mantém, por tantos séculos de fé e oração.
Quando ainda estávamos dentro dela, percebemos que a energia do lugar era percebida de forma realmente intensa e singular.
E são detalhes como esse que, independentemente de qualquer dor, nos levam à frente pelo nosso Caminho.

domingo, 24 de janeiro de 2010

8. Puente la Reina



Uma parte do Caminho que traz muitas oportunidades de aprendizado é a vivência nos albergues. Antes de estar aqui, já sabia de praticamente tudo; da simplicidade, dos problemas decorrentes do uso contínuo de uma mesma estrutura por muita gente, o que resulta em camas não limpas, sanitários comunitários, um punhado de gente estranha dormindo ao lado e roncando como uma orquestra desafinada, enfim, tudo isso e mais alguma coisa.
Mas estar aqui, vivendo isso, é mesmo algo muito diferente.
Hoje, por exemplo, passei uma noite daquelas. Deitei tarde, fui o último a ir para cama, e foi a primeira vez que tive de entrar totalmente dentro de meu saco de dormir para ter um mínimo de certeza de estar dormindo num lugar limpo.
Travesseiro? Juntei duas roupas dobradas e as pus dentro de uma fronha, e este foi o melhor travesseiro que pude arranjar.
Concluí que dificilmente conseguiria encontrar uma cama mais suja que essa em todo o Caminho. Torci para estar certo.
Meus pertences de valor estavam comigo dentro do saco.
Estava ainda contrariado pois minha câmera apresentou um defeito logo após o jantar, e não consegui consertá-la.
Mas não havia dúvidas. Esta foi realmente uma das noites mais interessantes até agora.
Bom, mas agora já é de manhã. Estou aqui, matando um pouco de tempo até desativação total da orquestra de roncos, e logo estarei novamente com minha casa nas costas rumo a Estella.
Ontem, explorei um pouco a pequena e surpreendente Puente la Reina.
A formosa ponte romana (postal indescritível) foi construída por ordem de uma rainha chamada Doña Mayor, esposa do Rei Sancho Garcês III, el Mayor, (Rei de Navarra entre 1005 e 1035), para passagem de peregrinos. E este é um dos pontos mais emblemáticos de todo o Caminho.
Tirei muitas fotos, e ainda acho que fui econômico.
A igreja tem altares banhados a ouro com muitas imagens. O teto é gótico, uma torre octogonal, altares laterais, e gente católica de idade até bastante avançada a me observar passando com uma câmera digital nas minhas ansiosas mãos, como a querer perpetuar de alguma forma, um pouco de toda história que aquele pequeno pedaço de mundo continha.
Procurava, como sempre, uma imagem de Santo Antônio (o meu Padroeiro), quando uma senhora espanhola se levantou e me falou sobre uma outra imagem que estava à nossa esquerda. Era de Santiago, mas havia sido trazida de outro lugar, creio que Sevilha, e era muito, mas muito antiga.
Ouvi atentamente sua explicação, admirei a imagem e a fotografei com cuidado. Depois encontrei meu Santo Antônio, e após uma rápida oração, saí sob o acompanhamento de todos os olhares silenciosos e atentos, talvez despertados pelo tom brilhante de minha camiseta verde e amarela.
Vi outras coisas interessantes como a igreja de dois altares com um Cristo numa cruz em forma de “Y”; e para terminar o dia fui comer algo, porque afinal, ninguém é de ferro, nem mesmo um deslumbrado peregrino rumo a Santiago.

sábado, 23 de janeiro de 2010

9. Rumo a Estella



Pé na estrada logo cedo, ainda com botas, mas com tendões inflamados e inchados. Já caminhei um bocado por aí, mas nunca os tinha visto desse jeito.
A sensação quando a parte de traz interna da bota tocava neles era de dor aguda. Era como se a pele houvesse sido cortada, mas felizmente era somente uma sensação.
Saí por último, e logo de início percebi que havia errado o caminho. Talvez depois de uma última visão, ainda um pouco hipnotizado pela beleza da ”Puente la Reina”, tenha perdido a noção das coisas e o próprio rumo.
Fui bem devagar, e mesmo assim alcancei o jovem casal português. E Francisco também apareceu e pareceu estar vindo, solidariamente, me resgatar.
Andamos a manhã toda passando por pontes romanas, igrejas, e “eremitas”. Fica até trivial falar de monumentos tão antigos. O Caminho hoje entrou um pouco por desvios devido a obras nas estradas, aqui chamadas de “carreteras”. Confesso que estava meio sem graça, pois minha máquina fotográfica apresentou um defeito e não ainda não havia conseguido consertá-la.
O almoço foi completo. E escolhemos um restaurante à beira de estrada totalmente ocupado por caminhoneiros. E que almoço! Simples, mas de-li-ci-o-so, embora considerando que estivéssemos famintos pelo desgaste da manhã.
Uma garrafa de vinho foi pequena para duas pessoas.
A Espanha tem decididamente um vinho excelente, e isso independe da região, conforme pude constatar. Nesses últimos dias tenho tomado vinho de Navarra. Imagine então os vinhos da Rioja que me esperam logo à frente!
Conversamos bastante, eu, Francisco, Isabel, Guilhermo, Madalena, e seu esposo que tem a profissão de Motorista oficial da prefeita da cidade de Cádiz. Todos poderiam ser definidos simplesmente como gente muito boa.
O povo espanhol tem sido muito simpático todo o tempo. Chegamos a Estella, e hoje resolvi me dar um presente, só pra variar. Me hospedei em um Hostal com banheiro (ducha) e um quarto silencioso, sem roncos (espero nem mesmo os meus), pois afinal eu mereço; e amanhã terei que estar bem pra ir em direção a Los Arcos, agora já com máquina fotográfica funcionando. Não consegui consertar a minha e então, tive que comprar uma nova. Ficar sem fotografar tudo isso que estou vivendo, eu não poderia de modo algum.
Sacar fotografias e poder congelar o olhar para as belezas de tudo que estou tendo o privilégio de ver, tudo isso é pura empolgação!

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

10. Mordomias



Conforme falei ontem, comparado a um albergue, este hotel de uma estrela, ou hostal como é chamado aqui, é realmente um luxo.
Dormi como um rei dorminhoco. Acordei animado, arrumei tudo e saí. Fui ao correio, mandei mais algumas coisas para Santiago (mais de um quilo de tranqueiras a menos), mandei também CD´s de fotos para a família, e iniciei a jornada a Los Arcos.
Estava usando uma papete em meus pés para poupar os tendões, mas logo em seguida começou a chover, e então fui obrigado a colocar as botas. Ai que dor!
Hoje, pela hora tardia que saí, logo percebi que seria o último dos peregrinos do dia nessa etapa, e que andaria sempre sozinho. E foi bom. Cantei, fotografei, rezei, telefonei, comi uvas até me cansar delas, e assim o tempo foi passando.
Num momento estava totalmente só num raio de quilômetros. Uma incrível sensação!
Eu brincava com o eco, e aí passou um grupo de peregrinos, desses que andam com carro de apoio. Mochilinhas leves, passos tão rápidos, que nem vi quando sumiram no horizonte. Muitos criticam quem dorme num hostal, quem usa carro de apoio, quem desfruta de qualquer mordomia, afirmando que isso tira o valor do Caminho.
Eu penso diferente.
Gosto do convívio dos albergues, e tenho feito muitas amizades em todos eles, tenho respeitado os regulamentos com as suas diversas regras gerais, mas quando estou muito cansado, vou direto para um hotel. Desfruto o pouco, mas providencial conforto. Recarrego minhas energias, e com muita humildade, continuo meu desafio até Santiago, do meu jeito.
Mais uma vez eu repito: “Cada um faz o seu Caminho”.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

11. Los Arcos



Meu Deus! Que igreja linda!
Deslumbrante! E com uma explicação detalhada do pároco, só me restava mesmo segurar meu queixo para que não caísse.
Altares barrocos talhados com múltiplas imagens. A Virgem de los Arcos no centro do altar com doze apóstolos em estátuas até o teto. O apóstolo João, sempre muito jovem, e sempre gerando alguns comentários ambíguos. Uma Santa Ceia com perspectiva diferenciada, incluindo o jovem apóstolo com essa mesma característica. Um claustro com pedras nomeadas ao chão, indicando túmulos seculares.
Até aqui, essa etapa até foi talvez uma das mais difíceis. Com meus tendões inchados, acabei fazendo o percurso numa velocidade bem mais baixa que meus companheiros.
Pela manhã, tive que esperar a abertura do Correio, pois havia mais uma remessa de objetos não tão úteis e pesados que decidi enviar a Santiago. Tentei caminhar com minhas botas, pois a chuva caía de modo insistente, e isso me atrasou ainda mais.
Mas tudo isso não diminuiu nem um pouco a emoção de cada trecho.
Passar em frente a uma vinícola à beira do caminho(www.irache.com)) e poder tomar vinho no meu próprio cantil a vontade, e ainda grátis, foi algo inusitado. Vi que havia uma webcam ligada, e quase telefonei ao Brasil para que me vissem. O problema é que o fuso horário indicava uma diferença de quatro horas, ou seja, estava tomando vinho às nove da manhã quando o Brasil ainda vivia sua madrugada. Deixei pra lá.
Por um bom tempo, cantei sozinho algumas das cantigas infantis que vinham à minha cabeça: "_ Jumento não é, jumento não é... o grande malandro da praça. Trabalha, trabalha de graça. Não agrada ninguém, nem nome não tem. É manso e não faz pirraça. Mas quando a carcaça ameaça rachar, que coices, que coices, que coices que dá... Ih Hóóó!". Essa, por exemplo, aprendi com minhas filhas na trilha sonora de Saltimbancos de Chico Buarque.
Antes de chegar a Los Arcos, havia uma passagem por um terreno plano e silencioso, onde preferi caminhar em silêncio para ouvir melhor o cantar dos pássaros. Embora anestesiado pela sensação de silêncio, dei uma parada solitária e, sentado num monte de feno, pude saborear umas bolachas (galletas) com água fresca. Que sabor!
Hoje, conheci uma peregrina que irá caminhar uns dias conosco. Seu nome é Glória, de Barcelona, e já fez o Caminho há alguns anos atrás com meu amigo Francisco.
Este longo dia terminou com uma missa em um convento, que incluiu a benção do peregrino com direito à oração, também em português, para os portugueses e brasileiros.
Sem dúvida, um dia de ouro para fechar o trecho pela região de Navarra. E agora, chegou a hora de conhecer "La Rioja".
Quem aceita um vinhozinho nacional com um bom "jamón ibérico"?

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

12. La Rioja


Dormi e sonhei várias vezes com meu trabalho. Durante os sonhos, participava de reuniões complicadas aqui no meio do Caminho de Santiago, como se estivéssemos lá. Coisas da vida!
Mas enfim acordei e após o ritual corriqueiro da bagunça matutina de remontar a mochila, me levantei, e afinal não pude reclamar dessa noite.
Café da manhã rápido, e saímos mais cedo para uma distância bem longa.
Passando por lugares lindos, parando às vezes em pontos não menos interessantes e, de metro em metro, de quilômetro em quilômetro, a distância foi sendo vencida.
Viana foi a cidade intermediária que mais chamou a atenção, depois de visitarmos uma bela capela com torre octogonal construída pelos templários em Torres del Rio.
Viana é um daqueles povoados com ruas estreitas, muito movimento e uma igreja descomunal. Encontramos um repórter que está fazendo matérias diárias para a imprensa sobre o Caminho, e decidimos seguir por vezes a sua pista para tentarmos visitar lugares mais isolados e especiais, onde nem todos conseguem acessar. Esse é o caso da Catedral de Santa Maria Madalena.
Como não poderia deixar de ser, os comentários sobre o livro “Código Da Vinci” aqui também são muito fortes.
Mas, mudando de assunto, em minha vida profissional, sempre tive muito contato com as tintas que decoram as construções com todas as cores possíveis. Contudo, aqui tão longe, sinto uma grande frustração quando vejo tantas paredes sem a vivacidade das pinturas coloridas. Por outro lado, reconheço que essa ausência de cores, é a indicação da presença de uma só cor, a cor da história, e uma história muito antiga.
Bom, mas depois de quase trinta quilômetros, chegamos à Rioja.
Logroño é uma cidade bem maior. O albergue tem ótima infraestrutura e, após uma boa ducha, a limpeza das botas e objetos em geral, saí para ver e tomar um dos melhores vinhos do mundo.
Na “Calle Laurel”, há diversos pequenos bares, e em cada um pode-se tomar vinho e beliscar alguma coisa pra acompanhar. Tudo muito delicioso e especial.
Meus queridos leitores, nem preciso dizer o que fizeram, Francisco, Glória, eu mesmo, e todos os peregrinos que passaram a noite naquele lugar, não é mesmo?
Eu não fui exceção, e pela primeira vez, voltei ao albergue literalmente “borracho”, alegremente bêbado, e muito feliz.
Hoje, ao passar por uma parada obrigatória onde uma senhora à beira da estrada atende aos peregrinos, acabei deixando involuntariamente meu cajado, e quando fui ver, já era longe demais para voltar e buscá-lo.
Um peregrino me disse que não se deve insistir em tentar reaver algo que ficou pra traz. Se algo ficou, é porque fez parte do caminho, e agora não faz mais. Se ele não ficou comigo, é porque assim era seu destino.
Bem, como a distância era realmente muito grande, deixei pra lá. Depois encontrarei outro.
Mas nos momentos em que estive sozinho com meu cajado, pensei sempre em muitas coisas. No que estou fazendo, no que estou vendo, e no que estou vivendo em todos estes dias. E confesso que senti uma sensação muito boa, com um pouco de dor nos pés, é verdade, mas isso tudo certamente me dará a chance de compreender um pouco mais sobre a minha vida. Um nível mínimo da sabedoria que tanto busco, e que talvez fique mais próxima de mim.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

13. Nágeras


Quando acordei e olhei para meus pés, levei um tremendo susto. Estavam inchados, os tornozelos, os tendões, e achei que teria muitos problemas para iniciar a próxima etapa. Bom, mas antes de qualquer tentativa, tive que seguir todo o ritual diário do “monta mochila”.
Depois que comecei a usar meu isolante inflável sobre as camas, nem sempre tão limpas, dos albergue, minha vida melhorou muito; pois meu saco de dormir é muito quente e poder usá-lo como um simples cobertor equilibrou de vez a temperatura. É outono, e as noites já não são tão frias.
Por isso mesmo, o trabalhinho adicional que tenho todas as manhãs para enrolá-lo e guardá-lo, compensa.
Guardo minhas coisas com cuidado, despeço-me dos amigos de Málaga (Guilhermo e Isabel), e vou à luta, mesmo sem saber se aguentaria vinte e sete quilômetros até Nágeras.
O caminho seria bem plano, mas meu nível de resistência era ainda uma incógnita.
Logroño bem que poderia ser melhor explorada por mais um dia pelo menos, mas sentia necessidade de continuar, e sendo assim, segui em frente.
As botas foram logo trocadas pelas papetes e tornozeleiras e o resultado foi surpreendente.
Andei muito bem, e nos trechos de percurso onde estive só, novamente e como sempre, pensei e refleti muito sobre coisas de minha vida.
Deveríamos fazer isso sempre, mas pena que não valorizamos o tempo que investimos nessas reflexões aparentemente descompromissadas.
Desde Puente la Reina vinha caminhando com um cajado pequeno, e conforme já contei, acabei esquecendo-o no caminho.
Não conseguia me lembrar o nome da mulher que me atendeu, mas hoje cedo com a cabeça mais leve, consegui me lembrar. Ela se chama Graça e é filha de uma famosa senhora do Caminho, a Dona Feliza, já falecida.
Hoje pela manhã, ganhei outro cajado de um peregrino simpático e falante chamado Nino, que também nos deu bolachas, maçãs, e avelãs, como uma espécie de talismã.
Utilizei esse novo artefato de apoio durante todo o dia, mas ao final da caminhada senti que ele não era meu, e assim o deixei também pelo Caminho. Mas dessa vez, propositalmente.
Sobre o meu cajado? Bem, sei que ainda hei de encontrá-lo.
Mas voltando às reflexões, tenho sentido a sensação de que estou numa fase de grande evolução. Esse processo tem sido tão rápido que nem sei o quanto. Enquanto ando, tudo vem à minha mente como um vídeo-tape, e consigo ver novamente tudo o que me aconteceu nos últimos meses com grande nível de detalhes.
Hoje, andei um pouco com minha agenda eletrônica tocando músicas que funcionavam como uma trilha sonora enquanto eu caminhava. Músicas lentas que acompanhavam meus pensamentos, me fazendo lembrar dessas diversas coisas. Coisas que foram vividas, e sei que algumas delas nunca mais serão revividas, porém nunca serão esquecidas.
Isso é algo interessante, mas muito difícil em nossas vidas. Muitas vezes temos que abrir mão de fases inteiras de nossa vida para que ela, como um todo, tenha certo sentido.
A etapa de hoje foi extremamente extensa. Mais de trinta quilômetros, que acabaram incluindo um erro de trajeto que nos custou mais de dois quilômetros, quando as pernas já não respondiam bem.
Nossos pés não nos perdoaram.
Ao chegarmos, fugi discretamente para um hostal aqui em Nágeras. Continuo comendo muito bem, tomando vinho com um prazer acentuado, e nesta data completei duzentos quilômetros já vencidos. Quem diria!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

14. Santo Domingo de la Calzada



Acordei mais cedo do que precisaria, e meus pensamentos eram sobre as vantagens e desvantagens das fugas para dormir em pequenos, mas confortáveis, hotéis em detrimento dos repletos, porém alegres, albergues.
Estando isolado. Sei que perco o contato com as pessoas, e para aqueles que gostam de falar, escutar, trocar experiências, rir, ficar sério, comer juntos; admito que a perda é deveras grande.
Não vou dizer que em alguns dias não irei novamente buscar um hotelzinho para um pouco mais de conforto, mas tenho certeza de que logo depois voltarei ao convívio das pessoas nos albergues.
Mas, conversas a parte, saí logo cedo, antes das oito horas, e fomos tomar o café energético de todas as manhãs.
Estava com minhas botas, pois preciso estar preparado para os dias de chuva, que conforme as previsões, logo virão.
Fui andando bem lentamente e sentindo bastante o contato do calçado com a sensível pele de meus pés, mas segui adiante. Chegando aos sete ou oito quilômetros, num povoado chamado Azofra, calcei as papetes com meias novamente. A necessidade de seguir era maior que a minha lógica preventiva.
Seguimos viagem por um campo aberto de vista interminável e muitos vinhedos.
Estou na região de la Rioja, “roubando” uvas e curtindo a paisagem. E aqui entre nós: isso não tem preço.
As papetes poupam meus tendões, mas os pés sentem os vinte e dois quilômetros assim mesmo.
Chegamos a Santo Domingo de la Calzada num domingo, e por isso nada estava aberto. Que pena!
Vi alguns monumentos, muralhas, edificações bem antigas, e a tarde transcorreu um pouco tranqüila demais naquela paisagem bucólica.
O lugarejo possui muitas histórias, e um milagre explica o motivo de haver algo como uma gaiola com um casal de galo e galinha brancos dentro da igreja.
No século XIV, um jovem chamado Hugonell passava pela cidade com seus pais. Como não correspondeu ao amor de uma jovem, esta o incriminou, e ele foi condenado à forca. Como não morreu por milagre de Santo Domingo de la Calzada, seus pais foram ao juiz da cidade e pediram sua libertação.
O juiz, incrédulo, disse que se o rapaz estivesse vivo, o frango que estava servido à mesa também estaria. Nesse momento, a ave se moveu do prato e saiu caminhando.
O jovem foi então libertado, e o casal de aves faz companhia aos peregrinos durante todo o ano.
Um detalhe interessante, é que durante a missa em que eu participava, o galo resolveu cacarejar bem alto justamente no momento das leituras. Embora os peregrinos estrangeiros esboçassem um sorriso, os fiéis locais seguiram com o ritual como se aquele som fizesse parte da paisagem. E na verdade, fazia.
Após o jantar, conheci um peregrino diferente. Um frade alemão que veio andando desde seu país. Levou sete dias somente pra ir de Lourdes até St. Jean Pied Port por causa das péssimas condições climáticas daquela região.
Estou falando bastante em alemão, e isso é muito bom. Amanhã vou pra Belorado, e logo cedo o dia promete muitas novidades. Iremos tomar café da manhã em Grañon, um lugar que inspira uma certa magia. Os guias falam que quem pernoita lá, dorme dentro da igreja, e à noite há um ritual religioso imperdível. Estou muito curioso!
Hoje, me hospedei num albergue bastante antigo. Sinto-me respirando ar de duzentos anos atrás. Penduro minhas roupas num varal rudimentar, e a lua me observa curiosa. Indefeso, sob a beleza de tanta luz, finjo desnecessária indiferença.
Estou no mesmo quarto que o casal de jovens portugueses.
Acho que eles querem dormir, e eu também. Boa noite!

domingo, 17 de janeiro de 2010

15. Mudança de Paisagem


O dia começou com uma alvorada linda às nossas costas, enquanto caminhávamos pela manhã.
Aquela cor vermelha no céu indicava um sol lindo nascendo no topo da colina, com Santo Domingo de la Calzada ficando para trás.
Logo, as nuvens nos fizeram esquecer a possibilidade de um dia de sol como ontem, mas a busca agora era por um bom café da manhã em Grañon, que estaria há uns seis quilômetros à frente.
Quando chegamos, houve uma pequena decepção inicial, pois tudo parecia estar fechado sem motivo aparente. Após alguma insistência, conseguimos comprar alguns pães numa rústica padaria, mas faltava ainda um pouco de café com leite quente.
Nossa última chance seria tentar algo no tal albergue. E foi lá que encontramos um delicado tesouro.
Entramos e fomos otimamente recebidos pelo jovem casal de hospitaleiros. Ele era americano da Califórnia, e ela era austríaca. Na verdade ambos estavam improvisando como hospitaleiros, mas o faziam com desenvoltura.
Conforme entendi, eles se conheceram no Caminho e decidiram seguir suas vidas juntos. Esse é um exemplo de destino sendo definido durante a viagem.
Logo, estávamos saboreando nosso café e ao mesmo tempo admirando aquele lugar aconchegante com bons espaços para uma boa noite de sono, uma lareira para combater o frio, enfim, um lugar que valeria a pena ter sido escolhido para pernoite.
Para terminar o passeio naquele lugar verdadeiramente mágico, fizemos uma visita à igreja por uma passagem semi-secreta.
Ainda admirados, seguimos nossa caminhada.
Hoje agüentei oito quilômetros com minhas botas, mas tive que voltar às castigadas papetes. Coitadas! Já estão com as solas perfuradas pelas pedras do Caminho, mas continuam protegendo meus pés com afinco.
Meus companheiros e eu seguimos já conscientes de que depois de amanhã nos despediremos em Burgos. Ele, Francisco, 44, continuará até Astorga. Glória, 49, uma catalã meio mística, mas muito simples, voltará para Barcelona. E eu, vou encurtar um pouco minha caminhada indo de trem até Astorga, para retomar o Caminho em Rabanal del Camino. Farei isso para que possa estar em Santiago de Compostela no tempo certo de um bom compromisso que terei por lá.
A paisagem realmente mudou. Não há mais vinhos; agora é a vez da terra sendo preparada para o trigo.
Aquela cor “ocre” que vejo quando estou nas janelas dos aviões prevalece por toda parte.
Campos intermináveis que estimulam mais ainda o ato de pensar, de refletir.
Dessa vez me passou pela mente o relacionamento que nasce entre os peregrinos. Intenso às vezes, volúvel, rápido, descomprometido, e finalmente consciente de que por minutos, horas, ou dias, se fixou como parte viva do Caminho de cada um de nós. Vou lembrar sempre destes e de outros bons companheiros que ainda espero conhecer e encontrar até chegar a Santiago.
Estou em Belorado, num Albergue que se chama “Quatro cantones”, onde os hospitaleiros tem um tratamento especial com brasileiros. Amanhã estaremos passando por San Juan Ortega.
A fase número um de minha viagem está chegando ao seu final. Logo começarei uma segunda parte que deixará para traz um trecho aberto e não percorrido, para uma possível volta num futuro ainda incerto. Gosto de fazer isso nas minhas viagens. Sei que nem sempre podemos fazer tudo o que queremos, e por isso, me divirto muito quando, propositalmente, deixo pendências para uma possível volta no futuro. Quem sabe, não é mesmo?
Antes de terminar esse dia, não poderia deixar de citar um momento delicioso que tive com Alda e Eurico, os meus amigos portugueses.
Comprei um vinho, e eles fizeram uma massa saborosa, a qual pudemos desfrutar juntos com muita conversa leve e sem compromisso, mas que me fizeram muito bem.
Mais um pequeno presente que o Caminho generosamente me deu.

sábado, 16 de janeiro de 2010

16. Pela madrugada


No meio da noite, eu sonhava um daqueles sonhos absurdos, e nele apareceu uma de minhas filhas. Ela parecia ainda bastante criança, e quando a percebi tão próxima, acordei assustado, talvez por acúmulo de uma saudade aguda, que naquele instante, se apoderou de mim.
E, como não costumo obter grandes resultados com a contagem de carneirinhos para voltar a dormir, comecei a imaginar sobre o que pensam todas essas pessoas, que dormem nessas várias camas beliche à minha volta, enquanto caminham. Afinal, elas convivem comigo nessa grande aventura.
Alguns estão totalmente sozinhos, e suas interações com outras pessoas são meramente superficiais. Outros, embora sozinhos, estão sempre integrados aos outros peregrinos, como se fizessem parte de uma família. E ainda há outros, como o exemplo de Grañon que relatei ontem, que se conhecem no Caminho e seguem juntos a partir de então. Uma integração plena.
Enfim, cada um tem sua forma e seu jeito de interagir durante sua experiência rumo a Santiago. Buscam objetivos diferentes, e acabam encontrando resultados mais surpreendentes ainda.
Aqui, estamos todos concentrados, e pelo menos uma meta é comum a todos, a de chegar a Santiago de Compostela. Talvez por esse motivo, tudo em relação ao nosso contato cotidiano fique tão latente, e também tão emocional.
Eu, pessoalmente, estou desfrutando muito de tudo. Não tenho idéia de como as pessoas me vêem. Uso a minha empatia para fazer contatos, mas confesso que gosto da busca de energia em mim mesmo e em minha fé.
Estou imaginando como serão as coisas a partir do momento em que estarei caminhando sozinho logo mais. Terei medo? As paisagens serão mais bonitas? Chegarei até meu objetivo?
O jeito é esperar para ver, e seguir em frente nesse novo Caminho.
Como estou inteiro nessa viagem, e toda a minha vida parece se resumir a isso, a prioridade se polariza em cada vivência, em cada fato diferente que ocorre.
Mas, o óbvio, é que independentemente de onde estivermos, aqui tão longe, ou mesmo no dia a dia de nossas casas, estaremos sempre seguindo o caminho muitas vezes incerto de nossas próprias vidas. Com as dúvidas e conseqüências de nossas escolhas.
E, creio que assim deve ser.
Acho que isso tudo trouxe meu sono de volta. E, por que não dormir mais um pouco? Até logo mais!

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

17. Fim de mundo


Quando saí pela manhã, tive a sensação de estar indo rumo ao fim do mundo. Logo no início, já me disseram que San Juan de Ortega não possuia água quente para os banhos, e que o caminho incluía ainda uma subida bem considerável.
Pela primeira vez pensei na possibilidade de abdicar do privilégio de tomar o banho diário do peregrino. A etapa previa vinte e quatro longos quilômetros e, após reabastecimento e um descanso rápidos, partimos.
A temperatura foi baixando sensivelmente, e ao entrarmos num bosque de pinheiros, começamos a avaliar um prolongamento da jornada em mais seis quilômetros para chegarmos a um outro povoado que, quem sabe, poderia ter a tão desejada água quente, e com a vantagem adicional de estar mais próxima de Burgos.
Chegamos a San Juan de Ortega e pudemos constatar a beleza singular do Monastério. Há um mausoléu do Santo que dá nome ao lugar, e um local extremamente especial onde ocorre o que se conhece como “o milagre do equinócio”.
No fim das tardes ensolaradas da primavera, um raio de sol entra por uma janela específica, e reflete seguindo sequencialmente por uma série de pequenas esculturas que descrevem visualmente a cena da Anunciação do Senhor.
Não foi possível pela época do ano e pelo clima, presenciar o tal milagre. Mas adoramos ter visto tudo por lá. Os sinos, as paredes, e o piso rústico nos pareceram obras de arte especialmente raras.
Depois dessa dose de energia, caminhar mais seis quilômetros foi muito mais delicioso do que cansativo.
Caminhamos por um terreno plano com vista privilegiada do horizonte. A lua de fim de tarde era imensa, e já com meu novo e definitivo cajado, certamente abençoado por San Juan de Ortega, me senti apto a continuar em frente rumo a Atapuerca.
A cidadezinha, ou melhor, o pequeno povoado, é definitivamente pequeno, e acabou ficando conhecido por resultados surpreendentes de explorações arqueológicas no local. Para nós era claramente um lugar com nada de nada. Deveria ser incrível viver num lugar daqueles.
Quando não se tem nada para fazer, fica tudo muito estranho; principalmente para os inquietos como nós, que não deixam um só segundo livre de alguma ação ou atividade. O ócio do pensamento é algo novo, e só vivendo momentos assim é que percebemos o quanto desperdiçamos não deixando o cérebro livre de vez em quando, somente para variar.
Nessas horas, ou mais realisticamente nesse segundo, a criatividade aflora, e algumas coisas acabam ficando mais cristalinas, e mais compreensíveis em nossa mente. Esse é o motivo principal da minha meta de aprender mais sobre as culturas orientais. É notório que esses povos desenvolveram esse conhecimento muito bem.
Para terminar esse dia intenso, tomei uma quente sopa de alho, literalmente saborosa, com bastante pão. Nada mais era necessário.
Dormi uma noite de príncipe numa cama superior de um beliche num albergue muito simples e singelo, aliás o único do local. Conforme pudemos saber, no passado, o lugar foi uma estrebaria onde os cavalos dos viajantes descansavam após longas cavalgadas.
Estou escrevendo quando já é final de madrugada. Preciso terminar de arrumar minhas coisas e uma pergunta não quer calar: Será que choverá tanto quanto parece?

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

18. Burgos, final da primeira etapa


Quando olhei no relógio é que percebi o quanto havia acordado demasiadamente antes do previsto, como que prevendo as dificuldades que iria encontrar nesse dia.
O dia amanheceu frio. Muito mais frio do que eu poderia prever. Ainda mais porque chovia, e o vento parecia igual ao dia em que enfrentei a subida dos Pirineus.
Me preparei com todos os recursos que estavam disponíveis na minha mochila, e por volta das sete horas da manhã, pela primeira vez tão cedo, saímos andando em meio à escuridão, somente guiados pela luz da minha pequena lanterna. Andamos sem rumo por quase uma longa hora. Tenho dúvidas se em muitos momentos não estávamos andando em círculos, mas uma coisa eu aprendi para o resto do caminho: nunca sairei antes do dia clarear.
Sim, poderei abrir uma exceção especial se a luz de uma linda lua ainda estiver lá no céu.
Mas voltando à aventura, depois de estarmos perdidos e nos encontrarmos novamente, tomamos o rumo em direção a Burgos.
O caminho de chegada a essa grande cidade parecia interminável.
Meu objetivo era chegar, carimbar minha credencial, e ir diretamente à estação para tomar um trem com horário definido rumo a Astorga. Será que daria tempo?
Felizmente, deu tempo! Tendões esgotados e tremendamente sensíveis, todo ensopado pela chuva, mas com meu novo cajado, senti a sensação agradável de etapa cumprida quando finalmente chegamos.
Estou escrevendo enquanto viajo neste trem que cruza o norte da Espanha e que me leva para Astorga.
Hoje, me despedi de Francisco e Glória. Eu sigo sem eles, e considero que esse tempo medido em trezentos e trinta quilômetros, deu-me a chance de conhecê-los melhor, e aprender muito com cada um deles.
Eles foram como guias para mim até agora, e espero que sigam bem, e que tenham um bom Caminho na frente de suas vidas.
Como é mesmo que se fala por aqui?
_ "Buen Camino Compañeros Peregrinos!"

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

19. Pensamentos no trem


Enquanto o trem segue para Astorga, vejo que o tempo melhora e isso me dá um ânimo inesperado.
Estou me sentindo um peregrino de verdade, e isso é algo diferente. A barba de quinze dias, a roupa úmida pela chuva em Burgos, e o ambiente já peculiar, fazem com que eu me sinta assim, e isso é uma sensação boa.
Nunca gostei de cheiro de umidade e agora tenho que conviver com isso, pelo menos por mais algum tempo, mas é algo que desfruto com um prazer especial de quem quis viver uma experiência nova, e agora se vê no meio dela, desfrutando-a plenamente.
Vou chegar ao meu destino de hoje, tomar um bom banho, secar até a alma, e explorar um pouco mais essa nova cidade. Quem sabe, vou comer um “Maragato”, que me disseram ser um prato bastante forte e típico da região.
Hoje, durante o caminho, estivemos falando um pouco sobre essa opção de não enfrentar os desafios que nos exijam abrir mão de um nível mínimo de confronto. É difícil acreditar que algumas pessoas façam isso por um motivo qualquer, e o fato é que muitas pessoas chegam até a não gostar de desafios.
Mas é fácil imaginar o quanto aprendem as pessoas que definem seus objetivos, lutam para alcançá-los, e vencem dificuldades aparentemente indestrutíveis.
A primeira e principal barreira parece ser a descrença dos outros em relação às nossas possibilidades.
Mas, afinal, é ótimo perceber que o resultado somente aparece, e de forma clara e cristalina, para os perseverantes, para aqueles que nunca desistem. Independentemente dos obstáculos que encontram.
Aqui, nesse momento especial, onde me sinto estranhamente solitário num vagão de trem, tendo a companhia de pessoas desconhecidas, e que dificilmente voltarei a ver, constato estar refletindo sobre algo que tem sido parte constante de minha vida.
É certo que muitas vezes não temos total clareza da visão que queremos concretizar, mas quando ela se define em nosso horizonte, tudo fica mais simples, e mesmo que a escalada, a estrada, seja repleta de desafios, são justamente eles, que nos alimentam e nos dão mais energias e motivação para continuar.
Vejo pessoas que esmorecem ao primeiro obstáculo, pessoas que desistem antes da chance da retomada, da reviravolta que a auto-motivação pode nos proporcionar. E é aí, que outros menos sensíveis avançam, e conquistam algo que poderia ser conquistado por todos.
Persistir, perseverar, nunca desistir, ser resiliente, retomar quando tudo indica o contrário como melhor caminho; tudo isso parece uma receita ilógica para a auto-realização, mas podem acreditar que funciona.

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

20. Recomeço


Dentro de uma pequena banheira, cheia de água quente, com muita espuma, e com as pernas pra cima.
Pois é assim que fiquei para me recuperar da grande sova que a chuva forte e a ventania me impuseram. Peregrinar também é descansar.
Descansar para retomar, para reiniciar mais forte, e ir até o final. Chegar a Santiago de Compostela.
Logo pela manhã, fiquei bastante ansioso, pois queria chegar à “Cruz de Ferro”. É um ponto considerado sagrado do Caminho, e é o mais alto também.
Estava bem com os meus pés, mas minha ansiedade me fez forçar muito na subida até chegar logo ao meu primeiro destino dessa manhã.
Cheguei. Fotografei. Parei menos tempo que desejava naquele local místico, mas realizei meu objetivo da manhã. A cruz está sobre um monte enorme de pedras de todos os tamanhos. Cada peregrino joga uma pedra no monte, e isso tem, ou pelo menos deveria ter, um significado individual. Dizem que algumas pessoas levam pedras de seus países e as atiram ao monte. Outros carregam seus desejos ou pedidos simbolizados em sua pedra, e outros como eu, simplesmente obedecem ao ritual de forma muito simples e “descolada” de qualquer sentido especial. Joguei minha pedra e segui.
Infelizmente, pouco tempo depois, percebi as conseqüências do esforço intenso e desnecessário daquela subida acelerada. Meu tendão do pé esquerdo gemia de dor e não houve jeito. Tive que trocar novamente a bota pela papete.
Logo depois, parei num albergue, aliás a única coisa que pude ver em Manjarín.
Ganhei um café quente, algumas bolachas, e a atenção carinhosa da hospitaleira.
Esse “refúgio” é bastante isolado e seu hospitaleiro, o Sr. Tomás, é uma figura bem marcante do Caminho. Ele se intitula como “O último Templário”, e costuma promover algumas cerimônias obviamente “templárias” muito impressionantes. Além disso, ele é visto como uma pessoa que está ali para servir aos peregrinos, e o faz com muita simpatia.
Como tinha pressa em cumprir minha etapa desse dia, pus a papete sobre as meias, agradeci a atenção e a importante ajuda, e saí.
O problema é que a chuva era muito fria, e definitivamente me congelava.
Em poucos minutos, senti meus dedos enrijecidos e sem qualquer movimento. Incrível! Mas cambaleando e até caindo, fui em frente com meus pés encharcados de água gelada. Estava solitário todo o tempo, mas mesmo com muita dificuldade, cheguei a Molina Seca.
A passagem pelos povoados anteriores foi sofrida, mas minha entrada em Molina Seca compensou todas as dificuldades. O lugar de aparência medieval, colorido, era uma imagem linda aos meus olhos.
Ao caminhar pelas ruas, busquei imediatamente um restaurante. Precisava me aquecer com urgência com um caprichado e aquecido “Menu do Peregrino”.
Comi praticamente um caldeirão todo de uma sopa quente de lentilhas, e em seguida devorei duas bistecas de carne de porco com batatas fritas, e quase uma garrafa inteira de vinho da casa.
O calor voltou alegremente ao meu corpo, e nem preciso dizer que fiquei mais alegre que o normal, para não dizer meio bêbado mesmo. Mas precisava daquilo.
Para ajudar, o tempo melhorou sensivelmente, e como até mesmo o sol apareceu, resolvi não parar muito por ali e, após um encontro muito caloroso com um belo arco-íris, segui feliz a minha jornada.
Já havia caminhado vinte e cinco longos e difíceis quilômetros, mas decidi ir em frente na direção da cidade de Ponferrada, que ao longe me parecia bastante atrativa.
Nesse dia bati meu recorde diário. Ultrapassei a marca diária de trinta e três quilômetros.
Desnecessário descrever o estado de meus pés, e confesso que nesse momento, tudo doía muito. Mas estava deveras feliz.
Há pouco, olhei para as montanhas de onde vim, e elas estão brancas de neve. Mas já estou me cuidando, e amanhã será um novo dia.
Quero ir a Villafranca del Bierzo, e quem sabe participar de alguma “Queimada” por lá.
Alguém sabe o que é uma “Queimada”?

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

21. Queimada


Pois é. No final das contas, não houve “Queimada” em Villafranca del Bierzo.
Jesus Jato, o hospitaleiro mais famoso da região, está cuidando da saúde em Madrid. E se ele não está, não há “Queimada” por aqui.
Deixe-me então explicar o que é uma “Queimada”. Trata-se de uma espécie de ritual onde as pessoas tomam uma bebida alcoólica, num ambiente escuro; e num determinado momento, a bebida é literalmente acesa com fogo. O álcool se queima e depois todos bebem. Cria-se um clima muito interessante entre as pessoas que compartilham esse momento da peregrinação. Vi uma cerimônia dessas num filme narrado por Paulo Coelho, que se passava no Albergue “Ave Fênix”, mas não foi dessa vez que pude participar de uma similar. Quem sabe da próxima vez!
Mas nem por isso, deixei de curtir o Albergue “Ave Fênix” que é muito exótico e totalmente diferente de tudo que já vi.
O Albergue Municipal é tecnicamente mais bonito, mas optei por esse por sua história e pela sensação mística que ele me permitiu vivenciar.
Somos somente dois peregrinos hospedados aqui nessa noite. Um jovem ciclista espanhol de La Coruña chamado Santiago, e eu, do Brasil.
O dia de hoje foi mais leve. Fiz os primeiros quinze quilômetros com um ex-executivo, o José, da cidade de Bilbao. Poderia defini-lo como um peregrino “VIP”, e de muito bom papo.
Sua esposa fez aniversário hoje, assim como minha filha Cecilia. Aliás, a Cecilia ganhou uma cesta de café da manhã encomendada por telefone desse seu papai peregrino. Tomara que tenha gostado.
Os executivos de hoje em dia estão começando a pensar mais em viver a vida de uma forma mais plena, e acredito que isso seja muito bom. É somente uma tênue tendência, mas já é um sinal positivo.
Por exemplo, o José conhece o mundo inteiro e, recém aposentado, decidiu fazer o Caminho de Santiago a pé. De uma forma bem “light”, mas e daí? Está fazendo e pronto.
No caminho, quando já estava mais perto de Villafranca del Bierzo, o sol saiu, a paisagem mudou, e puder fazer algumas fotos lindíssimas. Verdadeiros cartões postais. E de cartão postal em cartão postal, vou refletindo sobre a vida.
Essa experiência toda está sendo uma oportunidade intensa de reflexão, e espero que o leitor compreenda esses mergulhos eventuais em meus próprios pensamentos.
Hoje, o foco esteve na revisão dos valores pessoais. Uma revisão sem os grande choques, que são comuns nas mudanças radicais, mas talvez trazendo um posicionamento melhor sobre os mesmos.
Alguns medos, algumas inseguranças, alguns questionamentos, enfim, o uso do tempo de forma integrada para a evolução de meu autoconhecimento. Confesso que essa é a melhor descrição de minha experiência no Caminho de Santiago, caso isso seja perguntado após minha volta.
Mas amanhã, creio que não terei tanto tempo pra isso, pois amanhã será o dia da subida ao Cebreiro. Uma subida íngreme, para a qual me preparei bastante. Talvez com muito frio e, quem sabe, com neve.Tomara que não.
Hoje estreei luvas novas, um gorro e amanhã terei uma nova e protetora capa de chuva.
O Cebreiro é uma antiga aldeia celta com muitas histórias e mistérios. Vamos conferir isso.

domingo, 10 de janeiro de 2010

22. Cebreiro


Independentemente da solidão do albergue, tive uma noite com sono de boa qualidade. Acordei e, do lado de fora do dormitório, fiz o barulho normal de todas as manhãs na arrumação de minha mochila. Tomei um café rápido, me despedi do Sr. Angel na recepção com votos de melhoras ao Jesus Jato, e pus os pés na estrada.
O desafio de subir ao Cebreiro me excitava bastante.
Caminhei por longo tempo pelos acostamentos das estradas, passando rapidamente por vários povoados diferentes uns dos outros.
Resolvi parar num bar de estrada, mas meu traje de típico peregrino chamava muito a atenção dos turistas dos ônibus. Assim, me sentindo demasiadamente diferente, resolvi buscar um outro lugar mais tranqüilo.
Minha nova capa de chuva foi providencial nessa manhã, pois choveu bastante.
Antes de enfrentar o desafio da subida íngreme dos oito quilômetros, almocei muito bem. Aquela conhecida e deliciosa sopa de lentilhas, um filé de “ternera” (vaca), um bom vinho, e tudo o mais a que tinha direito.
Pelo horário dos espanhóis, eu almoço certamente cedo demais; e é por isso que os bares estão sempre vazios quando eu me sento faminto. Mas em todas as vezes, sou muito bem atendido.
Finalmente, reiniciei o caminho. Antes de pegar a subida de frente, fui abordado por um senhor espanhol que disse ter parentes em São Paulo. Tiramos a foto da amizade, anotei seu endereço, e motivado pelo novo amigo, fui em frente.
Levei até meu monitor cardíaco, e cheguei a 158 batimentos por minuto, somente caminhando. Algo que vale o registro.
O caminho era uma mistura de pedras, muita água de chuva que descia, e uma enorme quantidade de castanhas caídas. Que cenário!
A subida, conforme previsto, era extremamente inclinada, e uma chuva constante e intensa caía durante todo o tempo sobre mim.
Quando cheguei à parte bem mais alta, a paisagem novamente mudou. E novamente, meus olhos tiveram a chance de ver novas vistas panorâmicas dignas para algumas fotos ou cartões postais de alta definição.
Finalmente, entrei na Galícia! Uma invasão pacífica e muito feliz.
Fiz a foto oficial em frente ao “marco” que indicava a distância de cento e cinqüenta quilômetros de distância até Santiago de Compostela.
Entrar no Cebreiro foi uma experiência mágica. Imagine um lugar com edificações celtas, acinzentadas por uma névoa intensa, uma chuva persistente, mas ao mesmo tempo, uma atmosfera surpreendentemente calma.
Hospedei-me em um “hostal”, após tentar ir ao albergue local. Como não aparecia alguém para me registrar, carimbei, eu mesmo, a minha credencial, e fui buscar outro lugar.
Sinceramente, preferi ficar num lugar onde pudesse sair de toda aquela umidade, um lugar que tivesse uma boa calefação para secar bem minhas roupas, e me aquecer adequadamente depois de uma ducha bem quente.
Saí tão apressado do albergue que acabei esquecendo meu cajado. Mas, voltar lá e poder reencontrá-lo, foi muito bom. Afinal, esse meu companheiro de jornada me ajudou muito nos desafios desse dia especial. Apoiou-me e evitou prováveis quedas como um verdadeiro amigo.
Comi alguma coisa que aqueceu meu corpo, tomei uma bebida típica que a proprietária do lugar me ofereceu, e voltei rapidamente ao meu quarto.
Será que minha roupa vai secar a tempo?
Nessa noite chuvosa, quero dormir um pouco mais, pois terminará o horário de verão por aqui, e quero desfrutar esse ambiente quentinho embaixo dos cobertores.
Haja calefação suficiente nessas noites chuvosas e frias! O que seria de mim sem ela?

sábado, 9 de janeiro de 2010

23. Sol em Triacastela


Tive uma noite um pouco estranha.
A subida me desgastou como se tivesse tomado uma grande surra. O sono da noite foi mesclado com um frio típico de febre, e pensei que a chuva tinha encontrado um jeito de me dar os sintomas de uma gripe, o que a essa altura me atrapalharia no restante de minha caminhada. Mas, felizmente, isso não aconteceu.
Com o fim do horário de verão, ganhei uma hora a mais, e a usei simplesmente para dormir e me recuperar.
E foi uma ótima escolha. Levantei animado, arrumei as coisas, e saí. Foi então que veio mais uma boa surpresa. Me deparei com um céu de brigadeiro, sem nenhuma possibilidade de nova chuva.
E, apesar do frio, encontrei as condições ideais para seguir em direção a Triacastela.
Paisagens de cartão postal novamente inundaram meus olhos, e os efeitos do dia anterior em meu corpo dolorido foram minimizados pelo conteúdo do envelope de “Dolorac”, um santo medicamento que conheci numa noite dessas, e que certamente levarei para eventuais usos futuros no Brasil.
Desfrutei a descida, cantei durante praticamente todo o tempo. Às vezes por estradas vazias, escapando por trilhas suaves, encontrando gente animada, enfim, o tempo foi passando e fui vencendo o percurso com tranquilidade.
Após tantas etapas, em dias como esse, aparece uma certa ansiedade para terminar logo esse Caminho, e é nessas horas que a paciência e a perseverança são definitivamente testadas.
Descobri, por exemplo, que existe mesmo e, com bastante força, aquela tentação de cortar caminho, fazer alguma “trampa” durante a caminhada para encurtá-la.
Mas descobri também que, felizmente, a força da persistência em atingir o objetivo dentro dos princípios do Caminho é muito maior; eu diria infinitamente maior.
E assim, vamos em frente. Faltam cento e trinta quilômetros até Santiago de Compostela, e peço a Deus para que as coisas continuem assim, e que eu atinja minha meta em boas condições.
Chegando a Triacastela, me deparei com um pequeno povoado com uma boa perspectiva de movimento. Está prevista para essa noite uma festa da castanha, e que incluirá a tal cerimônia da “Queimada”. Fico animado, e com saborosa curiosidade.
O povoado deve ter entre cinqüenta e setenta habitantes e, se vier todo mundo, o evento será utilizado para que o novo “alcade” (prefeito) seja eleito durante a festa.
Enfim, grandes expectativas para logo mais!

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

24. Solidão


Que festa, que nada!
Veio novamente aquela forte sensação de frio, típica de febre, e que após o jantar, me levou diretamente à cama.
Mas acho que essa noite acabou sendo boa para um resgate. O resgate da minha energia.
Por esse motivo, felizmente, acordei bem disposto e segui animado na direção de Sárria.
Optei pelo caminho que me levava até o Monastério de Samos, e fiz isso por se tratar de um caminho feito por uma estrada e, teoricamente, mais movimentado.
Ledo engano. Nunca andei tanto por áreas rurais.
Cheguei a andar horas sem ver uma só pessoa. Que solidão!
Na verdade, uma solidão falsa porque todos os pensamentos eram cheios de movimento e de pessoas.
Confesso que em alguns momentos tive um pouco de medo. Mas fui passando por eles, e mudando de paisagem a cada quilômetro.
Os vinte e dois quilômetros de hoje, que me levaram a Sárria, me pareceram mais longos do que normalmente teriam sido. O corpo sentiu o desgaste crescente, e por isso decidi dormir melhor daqui pra frente. Quero chegar!
O próximo objetivo é atingir a faixa de distância a Santiago abaixo de cem quilômetros. E, para isso, amanhã bem cedo seguirei a Portomarín. Novamente a mesma pergunta: será que vai chover?
Hoje, vi Caetano Veloso num programa de TV. Seu show, que já tive oportunidade de assistir em São Paulo (Foreign Sound), faz o maior sucesso por aqui. Aliás, ele é um artista muito famoso também na Espanha, conforme pude perceber.
Os jogadores de futebol mais conhecidos também estão sempre em evidência. Quando digo que sou do Brasil, logo ouço o nome de Paulo Coelho. E, em seguida vem uma lista de jogadores de futebol.
Mas voltando ao Caminho, tenho tido bons contatos com senhores de mais idade aqui na Espanha. Frequentemente, me param, perguntam coisas, enfim, vão me ajudando a vencer as etapas.
Quando cuido mal de mim mesmo, quando não sou justo com meu corpo, ou quando estou com fome, sinto um pouco de raiva de tudo. Mas é só dar de cara com uma nova paisagem, ou um pássaro cantando na mata, ou mesmo o som de um dos muitos rios que cruzo durante a caminhada, e isso já mais do que um bom motivo para que eu saque minha máquina fotográfica, e registre o belo momento. Neste diário, incluirei as fotos mais interessantes que puder selecionar, para que o leitor possa ter uma idéia dos motivos de minha renovação diária, além é lógico de minha fé e perseverança, essas minhas mágicas companheiras.
As músicas da peça “Os Saltimbancos”, aquelas que cantei muito para minhas filhas quando ainda eram pequenas, voltam à minha lembrança. Canto sozinho, enquanto o ritmo das batidas de meu cajado vão marcando os meus passos e me conduzindo ao meu destino:
_ Au, au, au. Hi-ho hi-ho.
Miau, miau, miau. Cocorocó.
O animal é tão bacana
Mas também não é nenhum banana...