quinta-feira, 28 de janeiro de 2010
4. Desafio dos Pirineus
Ainda no Brasil, pensei na possibilidade de que em algum dos dias pudesse chover. Tanto é verdade, que trouxe comigo duas capas de chuva.
A mais importante para minha mochila, e uma outra para o peregrino aqui.
Mas nunca, nunca mesmo, eu poderia imaginar o que me aconteceu nesse primeiro dia de viagem.
Ainda no escuro, saí e senti pela primeira vez a sensação da caminhada. Com o corpo ainda não acostumado ao peso, fui subindo em direção aos Pirineus.
Muitas pessoas começam o Caminho em Roncesvalles, um pequeno povoado que era o meu objetivo de hoje, mas eu realmente não poderia perder as paisagens deslumbrantes dessa primeira etapa.
O problema começou lá pelo quinto quilômetro. A chuva aumentou, e então toda a minha confiança acabou ficando depositada nas capas e num saquinho plástico à prova de chuva, que eu havia trazido para proteger meus objetos mais importantes.
O aumento da chuva veio acompanhado de um vento assustador. Em alguns momentos, confesso que tive medo de ser levado por ele montanha abaixo. Minha caminhada seguia solitária, e naqueles momentos cheguei até a rezar em voz alta para que eu, enfim, pudesse chegar ao meu primeiro destino.
Parei num albergue francês, e uma bebida quente ao lado de uma lareira me trouxe uma sensação de proteção muito valiosa, embora o idioma não me tivesse deixado chance para qualquer aconselhamento com o pessoal de lá.
Saí, reabastecido de nova confiança. Mas que nada! O vento só aumentava de intensidade e a subida não dava sinais de seu fim.
Logo depois, um carro que vinha descendo em sentido contrário parou, e cinco franceses em aparente pânico, falavam em tom preocupante sobre algo que pelo meu entendimento significava uma forte recomendação para meu retorno imediato, pois à minha frente, as condições estavam ainda piores.
Passei a eles a percepção clara de que aceitava a sua sugestão, e comecei a voltar.
Mas percebi que eles, principalmente uma senhora que estava no banco traseiro, eram já mais idosos, e certamente aquela condição atmosférica estava muito além de suas possibilidades.
Não tive dúvidas. Me virei novamente e retomei a caminhada.
Senti uma sensação de vitória contra mim mesmo, que me confortou muito naquele momento, mas o vento ficou tão intenso que a chuva começou a machucar meu rosto.
Já havia sentido a força da chuva em minha pele num dia em que fiz uma viagem de barco e, sem nenhuma proteção, tive que enfrentar uma chuva fria que quase me congelou. Mas naquela vez eu não estava sozinho; e agora não havia ninguém com quem dividir meu medo e meu cansaço.
Resisti o que pude, mas não havia mesmo a menor chance para seguir. Um pouco à frente avistei um carro parado na estrada e pedi ajuda.
Um rapaz francês que arranhava um pouco o idioma inglês permitiu que eu entrasse. Deu-me um gole de vinho, e então eu pedi a ele que me levasse a Roncesvalles. Se havia algum desafio na subida, conclui que eu já o havia vencido.
O veículo seguiu, mas ele não tinha a menor idéia para onde estava indo. Depois de rodar a esmo por algum tempo, perguntei a algumas pessoas sobre o destino e percebi que estava totalmente fora da direção correta; e assim minha única alternativa foi pedir ao rapaz que me levasse de volta a St. Jean Pied Port. Tive a impressão que nem isso ele sabia, mas vi uma placa saindo da estrada indicando “Roncesvaux”, o meu destino no idioma francês, claramente uma orientação salvadora para os peregrinos desorientados pelos montes Pirineus.
Justo naquele momento avistei alguns peregrinos subindo com suas bicicletas nos ombros e com muita, muitíssima dificuldade. Um deles viu seu saco de dormir voar com o vento, sem a menor chance de um resgate.
Tive um impulso, e mesmo sob aquela ventania, peguei minha mochila, me despedi de Greg, o meu salvador momentâneo , e fui atrás dos ciclistas. Naquela situação, eu era até mais rápido que eles e então, logo os alcancei. Eram da Galícia e seu sotaque galego quase era português aos meus ouvidos.
Sendo assim, fui em frente. Logo o vento parou e pude continuar sem nenhuma possível crise que me levasse a pensar novamente em desistência.
Cometi um grande erro ao passar por uma fonte, e não enchendo meu cantil, desprezei quantidade valiosa de água que me fez uma enorme falta posteriormente. Foi uma grande lição que eu aprendi com esse detalhe. Não passaria mais sede por menosprezar fonte alguma pelo Caminho.
A trilha fora da estrada penetrou por um bosque de beleza estupenda. O outono fazia com que o chão se transformasse num tapete de folhas vermelhas e amarelas e, embora nada pudesse fotografar para que minha máquina hermeticamente protegida não se molhasse, tentei registrar toda aquela beleza para sempre em minha memória.
Andando pelo bosque, tentei buscar um cajado qualquer. Mas, terei que esperar um pouco mais para encontrar o meu cajado de verdade. Diz a lenda, que ele estará me esperando por aí, em algum lugar.
Cheguei totalmente “encarangado”, uma palavra que minha mãe usou certa vez para descrever um frango todo encolhido de frio sob a chuva.
Porém, após um banho quente e reconfortante, após colocar minhas coisas molhadas na calefação, e após matar minha sede e minha fome, fui à missa dos peregrinos. Essa missa é um compromisso imperdível e ao seu final, já com minha concha (Vieira) que é símbolo do Caminho, recebi a benção especial, e então senti que já havia me tornado um legítimo peregrino.
Hoje, foi um dia repleto. A chuva, a persistência dela, o vento forte, a subida íngreme, e minha inexperiência foram um grande teste para mim. E estou feliz, pois sei que passei nesse teste, e com louvor.
Essa sensação me revigora e fico cheio de ansiedade para uma nova etapa, que começará amanhã por volta das oito horas da manhã, tomara sem tanta chuva.
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Persistência é a palavra!
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